Pra quê discutir com madame?

Por Sonia Castro Lopes

Não é segredo pra ninguém que o Leblon é o bairro com o metro quadrado mais caro do Rio, quiçá, do Brasil. Bairro que inspirou o novelista Manoel Carlos a desenvolver suas tramas globais com personagens folclóricos repletos de discursos elitistas e preconceituosos. Sim, 90% da população do bairro votou e votará no capitão. Mesmo aqueles que, envergonhados, se declaram nem… nem… na hora H vão apertar o número do miliciano.

Existe no bairro um grande conjunto residencial de classe média que apelidaram Selva de Pedra. Foi erguido em pleno período da ditadura civil-militar e hoje conta, entre seus moradores, com uma expressiva quantidade de viúvas, filhas e pensionistas dos gorilas de 64. Uma turma que tem saudades da ditadura, viaja à Europa – ainda que de classe econômica -, se alimenta bem, frequenta bons restaurantes aos domingos e olha com desprezo para os miseráveis que vivem nessa situação por “não quererem trabalhar”. Essa é apenas uma fatia dos leblonenses que, por ali residirem e desfrutarem de rendas maiores que a de outros mortais, se julgam integrantes da classe AA, ou seja, dignos representantes da elite carioca. O problema é que a verdadeira elite, por sua vez, olha com desdém para esse tipo de gente por acreditar que possuem natureza e origem distintas.

Fiz esse preâmbulo para narrar um episódio de intolerância e preconceito no qual se encontram representados todos os segmentos da população do famoso bairro. Os  personagens em questão são um morador de rua, uma moradora da Cruzada São Sebastião (conjunto habitacional de pobres), um casal representante legítimo dos AA e algumas  distintas “senhoras de bem” com pinta de esposas e/ou pensionistas dos coronéis da reserva habitantes do “Selva”.

Meio dia de ontem (4). Na Rua Ataulfo de Paiva, calçada do Shopping Rio Design, próximo a uma fila do Banco Itaú, havia um alvoroço. Parei para me inteirar do acontecido e pude ver um senhor branco, muito bem vestido, acionar a guarda municipal para encaminhar à delegacia uma mulher preta em trajes modestos que teria “ofendido sua senhora”. Sentindo-se injustiçada, a mulher alegava que não xingara a madame, mas que agora o faria e, fora de si, mandou-a tomar em todos os orifícios possíveis…Pra quê???? O caso tomou proporções gigantescas e o quarteto seguiu rumo à 14ª DP.

Ainda sem entender o fato gerador de tanta encrenca procurei assuntar as velhotas da fila do banco que balançavam a cabeça em sinal de reprovação. O pivô da confusão foi um jovem adolescente preto, morador de rua, que estendera seus trapinhos na calçada do shopping bem em frente ao banco Itaú. Incomodada com a situação, madame interpelou o gerente que prontamente se dispôs a enxotar dali o “indesejável”. Imediatamente, a mulher preta (‘favelada da Cruzada’, segundo as depoentes) tomou as dores do jovem e pôs-se a discutir com madame, que devia pertencer ao time daquela que se aborrecia porque “a raça não melhora” por causa do samba e do pessoal do morro… (Haroldo Barbosa/Janet de Almeida, Pra quê discutir com madame?)

Passei a entender melhor o furdunço quando o menino se levantou, calçou os chinelos, meteu os paninhos numa mochila e marchou atrás da turma dizendo que, mesmo sendo “de menor”, iria à delegacia testemunhar a favor da mulher que o tinha defendido. “É preciso ter consciência negra!”, bradava ele, para o espanto dos presentes.

A título de provocação, comentei com as prováveis viúvas da caserna que se tratava de um episódio de racismo, crime inafiançável, ao que me responderam: “Só se for racismo ao contrário, porque a senhora [branca] foi ofendida apenas porque reclamou do cheiro desagradável que esses moradores de rua exalam, empesteando o bairro…”

Saí dali convicta de que contra preconceito e hipocrisia, há poucos argumentos e muito o que fazer.

Foto: O ‘indesejável’ das gentes. Por Sonia Castro Lopes

Acesse para ver/ouvir Pra quê discutir com madame na voz de João Gilberto

https://www.youtube.com/watch?v=ojr0HdBH_T8

 

 

 

 

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