Por Miriam Waidenfeld Chaves
Construída nos idos de 1760, a matriz de Cruz das Pedras, cidade da região cacaueira da Bahia, fazia tempo não testemunhava acontecimento igual. Gente graúda, familiares oriundos da capital e convidados de modo geral se espremeram a valer na igreja para poder enxergar o casamento de Fernando e Dolores, realizado pelo bispo de Ilhéus, tio da noiva.
Assim, ao som de I have a dream do grupo ABBA, Nando e Lola para os íntimos, casaram-se com o intento de realizarem o seu sonho. E quando Lola adentrou a nave da igreja em seu vestido de tule esvoaçante, Nando sorriu e não teve dúvidas de que ambos seriam finalmente felizes.
Mais do que isso, o casamento, apesar da ausência da marcha nupcial no momento da entrada da noiva na igreja, significou uma aliança política das boas entre as famílias Tavares e Bezerra que, naquela mesma noite, iniciaram os conchavos para a próxima eleição estadual.
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No dia seguinte, na praça da matriz não se falou de outra coisa. Era o vestido hippie chic da noiva, o bolo e os canapés meio esquisitos, mas deliciosos, e a música disco, que colocou todos para dançar. Enfim, foi um casamento sui generis, assim como eram os noivos. E ambos, cúmplices que nem eles só, apenas aguardavam pelo seu futuro.
Prá frentex, apesar do sobrenome tradicional, Lola e Nando, nascidos naquela lapinha de Deus, não saíram aos seus. “Mas, o que fazer? São jovens”, diziam seus pais. “Pelo menos poderiam se casar”, confidenciavam-se na esperança de que a amizade dos filhos desse em casamento.
Dito e feito!
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No Rio de Janeiro, a cidade maravilhosa os recebeu de braços abertos. Ali, em Ipanema, bem no Posto 9, point da galera descolada, gay e de esquerda, mais exatamente na rua Nascimento Silva, esquina com Joana Angélica, num dois quartos cheio de plantas e uma rede, o casal sentou praça.
Alegres e descomplicados, queriam apenas experimentar a vida longe das amarras do cacau. Queriam apenas ser eles mesmos, sem fingimento: Lola queria ser cantora e Nando queria pegar uns bofes sem culpa.
Assim, em pleno ano de 1979 os eternos amigos transformaram a Boate Sótão, na Galeria Alaska, em Copacabana, em sua segunda casa. E foi nesse reduto gay da Zona Sul carioca, que Lola e Nando, ao escutarem I’ll survive ou Macho man, refaziam o seu pacto dançando muito.
Foi ali que Paulo os conheceu. E foram tantas essas noites que não houve outras iguais.
Inesquecíveis, segundo o próprio Paulo!
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Até hoje, lembro-me desse “inferninho”, em Copacabana, quando pela primeira vez, esbarrei em Lola e Nando dançando como se não houvesse amanhã. Ela, com seus cabelos escorridos, sempre de bata indiana, calça de cetim colorida e pulseiras e colares mil, parecia uma deusa. Nando, de olhos verdes, camisa de seda estampada, pantalona boca de sino e cordão de ouro pendurado no peito entreaberto, era um colírio para os meus olhos.
Apaixonei-me pelos dois. Pelos seus inúmeros anéis e gestos. Passava a noite, de longe, observando a sua alegria. Até que num sábado de boate lotada, escutei alguém me chamando:
– Paulo, venha cá. Quero te apresentar Lola e Nando, que acabaram de chegar da Bahia.
Sem dúvida, eu, já um tanto calejado pela vida, os achei um pouco ingênuos. Mas, talvez, tenha sido justamente esse frescor que tanto tenha me encantado em ambos.
E foi, naquela noite abençoada, que esse casal entrou na minha vida para ficar. Primeiro, namorei Lola, que me levou às alturas. Depois, fiquei com Nando por uns tempos, que me deixou de quatro com suas invencionices. Até que viramos um trio.
Nessa época, passei parte de um dos meus verões inesquecíveis em Cruz das Pedras, mais exatamente na casa de praia dos pais de Nando, em Ilhéus. Ali, longe do bochicho carioca, pude conhecer melhor meus queridos amantes e suas respectivas famílias.
Fui apresentado ao seu Zequinha, avô de Nando e dono de uma das maiores minas de esmeralda da Bahia, e à dona Quininha, avó de Lola, namorada de seu Zequinha na juventude e, mais tarde, sua amante. História rocambolesca essa, posto que os dois jovens tiveram suas vidas comandadas pelos interesses políticos familiares.
Também conheci as tias solteironas de Nando, que praticamente o criaram, visto que sua mãe, sempre adoentada, vivia na cama. Enfim, da piscina para a praia e da praia para a piscina entre muitos daiquiris, sempre existia uma história familiar para se ouvir.
Voltei de lá almodoviano.
Mas, no fatídico ano de 1982, Lola e Nando me contaram que o pacto de ambos havia sido descoberto pela oposição política de seus pais e aí não deu outra: perderam as eleições.
Além disso, nesse mesmo ano, com o anúncio do primeiro caso de Aids no Brasil, nós três colocamos nossas barbas de molho e nos recolhemos, cada um em sua casa. As badalações acabaram e os jovens baianos, como ficaram conhecidos, concluíram que já era hora de crescerem. Se separaram, e nós três, finalmente, resolvemos tocar a vida como amigos.
E, nos domingos ensolarados daquele ano, o Posto 9 passou a ser o nosso pedaço de terra firme na cidade maravilhosa.
Miriam W. Chaves é constista e professora da UFRJ.
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Excelente!
Gostei muito.
As referências são espetaculares!
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