Por uma política de educação especial inclusiva

Sonia Castro Lopes

Por Sonia Castro Lopes e Rafael Guimarães Costa*

 

Em recente entrevista ao programa Sem Censura da TV Brasil, o ministro da Educação, Milton Ribeiro, revelou mais uma vez que nesse (des)governo ‘um manda e o outro obedece.’ Ao dizer que “criança com deficiência atrapalha a aprendizagem das outras”, o ministro segue na contramão de uma política de educação especial inclusiva preconizada pela lei maior da educação (Lei 9394/96) e de várias medidas institucionais que convergem para esse fim. Não podemos esquecer que, em conversa com seus apoiadores no início deste ano, o presidente da República defendeu separar alunos “inteligentes” dos “atrasados”, termo que ele atribui a alunos com deficiência: “Você tem um garoto muito bom, que pode colocar na sala com melhores. Você tem um garoto muito atrasado, faz a mesma coisa. O pessoal acha que juntando tudo vai dar certo. Não vai dar certo. A tendência é todo mundo ir na esteira daquele com menor inteligência. Nivela por baixo. É esse o espírito que existe no Brasil”, disse ele, do alto de seu ‘saber pedagógico.’

Felizmente o malfadado decreto nº 10.502/20 por ele assinado e que estabelecia novas regras para a educação de alunos com deficiência foi suspensa a partir de uma ação de inconstitucionalidade apresentada pelo PSB argumentando que o decreto constituía verdadeiro retrocesso em relação à educação especial no Brasil, na medida em que feria artigos da Constituição Federal por favorecer a segregação de pessoas com deficiência. Por determinação daquele instrumento legal o governo federal, estados e municípios deveriam oferecer “instituições de ensino planejadas para o atendimento educacional aos educandos da educação especial que não se beneficiam, em seu desenvolvimento, quando incluídos em escolas regulares inclusivas e que apresentam demanda por apoios múltiplos e contínuos”. Especialistas da área consideraram que a alteração representa um retrocesso em uma luta de 30 anos pela inclusão social e entendem que o novo decreto enfraqueceria o direito de a pessoa com deficiência frequentar a escola comum.

No entendimento do ministro Dias Tofolli, esse decreto poderia servir de base a políticas que fragilizam o “imperativo da inclusão” de alunos com deficiência, mudando a regra adotada desde 2008 com a adoção da Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva (PNEEPEI), bem como a Lei de Inclusão sancionada em 2015 pela presidenta Dilma Roussef. A decisão de Tofolli foi submetida ao plenário do STF no dia 11/12/20 que, por maioria de votos, referendou medida cautelar para suspender o decreto do governo Federal. Prevaleceu no julgamento o voto do relator, ministro Dias Toffoli para quem as regras constitucionais e infraconstitucionais prevêem “absoluta prioridade a ser concedida à educação na rede regular de ensino, devendo ser este o ponto de partida das políticas educacionais a serem adotadas pelo Poder Público. O relator foi acompanhado pelos ministros Alexandre Moraes, Edson Fachin, Cármen Lúcia, Rosa Weber, Luiz Fux, Ricardo Lewandowski, Gilmar Mendes e Luís Roberto Barroso, sendo vencidos os ministros Marco Aurélio Mello e Nunes Marques.

Na verdade, presenciamos no país um embate entre movimentos que foram fundamentais para fomentar no imaginário popular uma cultura inclusiva no combate às marginalizações e movimentos que impuseram uma cultura excludente e de desigualdade. Desde as pequenas práticas do setor privado no Brasil Império, as técnicas higienistas das décadas de 1920 e 1930 (com a saúde sendo parte de uma proposta pedagógica) até chegarmos à promoção de uma educação que integrasse alunos deficientes nos ambientes de educação regulares.

As leis impostas como estratégias de imposição na relação entre a esfera governamental e os sujeitos de ação caminham pari passu com as táticas de sobrevivência dos menos favorecidos em forma de lutas por uma educação mais humanizada e inclusiva. Na Era Vargas o ponto culminante da reforma educacional deu-se com a criação do Ministério da Educação e Saúde Pública em 14 de novembro de 1930, por meio do Decreto Lei nº 19.402. Esse órgão ficaria responsável por organizar o projeto pedagógico tanto no Governo Provisório (1930-1934) quanto no Governo Constitucional (1934-1937) e, principalmente, no Estado Novo (1937-1945). Nessa época entendia-se que Saúde e Educação eram setores indissociáveis.  Entretanto, o entendimento sobre educação ainda não era o que temos hoje – uma educação pública e para todos. As iniciativas nesse contexto tinham então caráter privado e clínico-escolar e acabaram fortalecendo instituições específicas de atendimento educacional especializado – as escolas para surdos e cegos criadas ainda no Império, como o Instituto Nacional de Educação de Surdos (INES) e o Instituto Benjamin Constant (IBC).

Nessa perspectiva destacaremos as principais leis que propuseram mudanças significativas e marcaram o cenário da política pública com relação à Educação Especial. A primeira LDB (Lei nº 4.024/61) garantiu o direito dos “alunos excepcionais” à educação, estabelecendo em seu Artigo 88 que para integrá-los à comunidade, esses alunos deveriam enquadrar-se, dentro do possível, no sistema geral de educação. Podemos perceber, nesta lei, dualidades em seu entendimento, tendo em vista que por “sistema geral” de educação poderíamos ter tanto os serviços educacionais comuns como os especiais, mas pode-se também compreender que, quando a educação de deficientes não se enquadrasse no sistema geral, deveria constituir um especial, tornando-se um sistema paralelo.

Em 1972, o Conselho Federal de Educação em Parecer de 10/08/72 definiu a “educação de excepcionais” como educação escolar. Em seguida, Portarias ministeriais definiram a clientela da educação especial, posicionando-se segundo uma concepção diferente do Parecer, deixando clara a visão terapêutica de prestação de serviços às pessoas com deficiência e elegeram as questões corretivas e preventivas em detrimento da promoção da efetiva educação escolar. Atualmente, percebemos essa dificuldade do poder público, sobretudo de legisladores, em distanciar a Educação Especial (escolar) de atividades relacionadas ao atendimento clínico e a assistência social em propostas que visam à inclusão. Tal dificuldade fortalece a perspectiva das instituições de Educação Especial, criando narrativas que abrem brechas para a disputa do financiamento público por parte de instituições privadas.

Avançando, temos a LDB (Lei nº 9.394/96) que destina o Capítulo V inteiramente à educação especial, definindo-a no Artigo 58 como uma “(…) modalidade de educação escolar, oferecida preferencialmente na rede regular de ensino, para educandos que apresentam necessidades especiais”. Inegavelmente tivemos um avanço com relação à inclusão escolar, no entanto, mais uma brecha é percebida, novamente a favor das instituições privadas de Educação Especial quando lemos a palavra “preferencialmente” no lugar de obrigatoriamente. Dar preferência não quer dizer garantir um direito. Ainda diante da nova LDB, percebemos claramente as garantias didáticas diferenciadas, como currículos, métodos, técnicas e recursos educativos; terminalidade específica para os alunos que não possam atingir o nível exigido para a conclusão do ensino fundamental, em virtude da deficiência; especialização de professores em nível médio e superior e educação para o trabalho, além de acesso igualitário aos benefícios sociais. Aqui ainda percebemos, na forma da lei, espaços vagos ou inexistentes. A questão avaliativa não é mencionada, sobre a terminalidade do ensino do aluno deficiente há espaços interpretativos sobre quem alcançou as metas ou não. Ainda temos lacunas sobre a formação desse profissional especializado, tanto no que diz respeito à educação inicial quanto no que se refere à educação continuada.

Em suma, o que conseguimos identificar são duas questões principais com relação aos avanços e recuos da Inclusão Escolar. O primeiro ponto diz respeito aos nossos legisladores, a falta de interpretação sobre inclusão e educação é decisiva com relação às brechas e distorções nas letras oficiais. Num segundo momento, somos capazes de captar um enorme lobby do setor privado, representado pelas instituições de Educação Especial, na disputa pelo financiamento público no setor privado. Por mais que o avanço seja paulatinamente vagaroso, é fato que temos avançado, muito pela ação de pais, responsáveis e professores que travam batalhas cotidianas com a finalidade de garantir um espaço na sociedade para essas crianças e adolescentes.

A maior conquista nesse campo foi a PNEEPEI que vigorava desde 2008. No entanto, desde 2019 o desmanche das políticas educacionais relativas à Educação Especial vem sendo implementada com ações incisivas em setores estratégicos. Um exemplo foi a extinção, em 2019, da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão (SECADI), órgão que tinha por essência garantir o direito à educação com qualidade e equidade, tendo políticas públicas educacionais voltadas para a inclusão social.

Nesse mesmo sentido, em setembro do ano passado surgiu o Decreto 10.502, sancionado pelo governo federal sem a participação das comunidades interessadas, que pretendeu alterar a política pública retrocedendo ao ponto em que a família define se o aluno deficiente será matriculado numa escola especial, numa escola regular, ou numa escola bilíngue. Num primeiro momento o decreto poderia ter sido entendido como liberdade de escolha, conferindo aos responsáveis autonomia e possibilidades. Contudo, tratava-se de mais uma medida contrária à inclusão social, pois abandonaria todo esforço direcionado à inclusão de deficientes nas escolas regulares, podendo acarretar a marginalização desses adultos no futuro convívio social.

Portanto, a  política de educação especial defendida pelo ministro Milton Ribeiro (que reflete a posição do atual governo) traz uma proposta de marginalização de estudantes deficientes, além de favorecer certas instituições privadas para obtenção de verbas públicas direcionadas à educação especial. Tais medidas abrem brechas para a retomada de uma Educação Especial não inclusiva e não equitativa, acarretando um verdadeiro rompimento histórico com a questão do combate às desigualdades sociais do ponto de vista da educação inclusiva.

 

*Rafael Guimarães Costa é professor da rede pública, mestre em educação pela UFRJ e doutorando na UNIRIO.

 

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