Por uma maior Diversidade na Ciência

Andreia Guerra
Andreia Guerra
Andreia Guerra

Por Andreia Guerra*

 

O ano de 2021 começou com as atenções voltadas para a vacinação contra a #Covid-19. Se muitas pessoas estão ansiosas por receber doses da vacina, algumas hesitam em serem vacinadas. Em 31 de janeiro de 2021, o jornal inglês The Guardian publicou uma matéria sobre a hesitação de mulheres australianas da faixa de 30 a 39 anos com a vacina contra a #Covid-19 (https://www.theguardian.com/society/2021/jan/31/there-is-a-lot-of-distrust-why-women-in-their-30s-are-hesitant-about-the-covid-vaccine). Dentre os possíveis motivos para tal receio, destaca-se, na matéria, o fato de o corpo feminino ser pouco estudado na ciência. Como aquela é a faixa etária em que a maioria das mulheres australianas deseja engravidar, elas não necessariamente se sentem seguras em relação às consequências da vacina para suas desejadas gestações. Afinal, a exclusão de mulheres em estudos científicos é histórica.

 

Consideremos o caso da dissecação de corpos, uma prática recorrentemente usada para o estudo do corpo humano. Na Europa nos séculos XVI e XVII, abrir corpos, estudá-los e representá-los imageticamente não apenas gerou novos conhecimentos, como difundiu novos saberes sobre o corpo humano. Os Atlas de Anatomia, construídos a partir da abertura de corpos, serviam de guia para outras sessões de dissecação, difundindo e gerando conhecimento.  De Humani Corporis Fábrica de Andrea Vesalius, publicado em 1543, foi um dos Atlas muito referenciado naquele contexto. O frontispício da obra é composto por uma imagem que apresenta uma sessão pública de dissecação de um corpo de mulher. O útero é o elemento em destaque. Entretanto, das mais de trezentas gravuras de corpo humano que compõem a obra, apenas seis representam corpos femininos e nelas o destaque é para o útero. O contraste entre o destaque do corpo feminino na abertura da obra e a baixa representação em seu conteúdo pode ser entendido a partir de um olhar para a prática da dissecação naquele contexto.

 

Estudar o corpo humano passava por participar de sessões públicas de dissecação, seja como parte da audiência, seja como protagonista das aberturas de corpos. Médicos, cirurgiões e demonstradores, todos homens, abriam corpos masculinos, apresentando os órgãos do corpo aberto e o estudo de suas funções. A baixa presença feminina nessa prática é percebida tanto na ausência de corpos femininos dissecados, quanto na baixa presença de mulheres na audiência dessas sessões. Os poucos corpos femininos estudados eram abertos por homens em sessões privadas.  E a maior parte dessas aberturas destinava-se a autópsias de mulheres que haviam morrido no parto, ou seja, era a parte reprodutiva do corpo o objeto de interesse naquele contexto. Assim, o destaque dado a um útero no frontispício do De Fabrica não parece indicar uma valorização do estudo do corpo feminino. 

 

Nos Atlas de Anatomia dos séculos XVI e XVII, todos eles produzidos por homens europeus, há predominância de representações de corpos de homens brancos e partes de corpos que parecem pertencer a um corpo genérico. Nesse processo, conhecimentos sobre os corpos daquelas mulheres deixaram de ser construídos. Nos séculos seguintes, outros corpos de mulheres foram estudados e algumas mulheres participaram da ciência, porém a primazia do homem branco nos centros de produção da ciência privilegiou o estudo de alguns corpos em detrimento de outros. Tal primazia acabou por inviabilizar saberes produzidos por mulheres e outros atores sociais, levando a desperdícios de conhecimentos produzidos fora dos cânones da ciência.  Mais do que ajudar a explicar a hesitação das mulheres australianas com a vacina contra a COVID-19, as preferências, invisibilizações e desperdícios ao longo da história da ciência apontam para a urgência de nos engajarmos na luta de diferentes movimentos sociais em prol da maior diversidade na ciência. 

 

 

Aumentar o número de grupos sociais representativos na produção científica amplia a gama dos problemas estudados e as possibilidades de respostas a esses problemas. Considerando a complexidade das questões a que a ciência se defronta na contemporaneidade, não podemos desperdiçar possibilidades de respostas. Apequena diversidade na ciência não é apenas um problema dos grupos minoritários. Esse é um problema que afeta a todos.

 

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*Andreia Guerra é professora e pesquisadora do Programa de pós-graduação em Ciência, Tecnologia e Educação do CEFET/RJ.

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