Por Marly Motta
“O fornecimento de água e esgoto no Rio sempre foi instrumento de uso eleitoral. As práticas são conhecidas desde a política da bica d’água, numa referência à estratégia do ex-governador Chagas Freitas (e de seus aliados políticos), que comandou o extinto estado da Guanabara (1971-75) e o estado do Rio de Janeiro (1979-83)”. (O Globo, 30/4/2021).
Boa parte dos leitores de O Globo, interessada em notícias sobre o futuro da Cedae, não deve ter entendido as referências a Chagas Freitas e à sua “política da bica d’água”. Por que “bica d’água” para designar a “estratégia do ex-governador”, o qual, embora eleito indiretamente por duas vezes, dominou a política do Rio de Janeiro por quase duas décadas, e que, ainda hoje, é referência nas práticas políticas do estado? Afinal, quem foi Chagas Freitas, mesmo?
Não é exagero afirmar que, junto com Carlos Lacerda (1960-65) e Leonel Brizola (1983-87; 1991-95), compõe o trio de governadores que marcaram a história e a cultura política do Rio de Janeiro. Na verdade, para além de chefes do Executivo estadual, os três comandaram a formação de importantes correntes políticas a eles diretamente vinculadas: o lacerdismo, o chaguismo e o brizolismo. Da mesma maneira, é correto dizer que se tornaram referências paradigmáticas de diferentes concepções e padrões de atuação na política local e, mesmo, nacional.
Dono de três mandatos parlamentares – em 1966, foi o deputado federal mais votado no país –, duas vezes governador por eleição indireta, Chagas Freitas, ao contrário de Lacerda e Brizola, não se tornou uma figura de destaque na política nacional ao privilegiar uma atuação política de corte local, baseada na prática do favor e do clientelismo. Chagas possuía grande facilidade em lidar com as “pequenas demandas locais”, a bica d’água nas favelas, o asfaltamento da rua, a localização dos pontos de ônibus, e por aí vai. Nas palavras do jornalista Rogerio Coelho Neto, “Chagas sabia quem era quem em Quintino, quem era quem em Bangu”. No lugar de uma política de atendimento universal às demandas de abastecimento de água e de saneamento, a instalação de bicas d’água, especialmente nas favelas, atendia às necessidades mais urgentes dos moradores, e obedecia aos interesses dos políticos que o apoiavam em cada região da cidade do Rio, em cada município do estado. As obras eram liberadas através desses políticos, as nomeações eram feitas por meio deles.
Ao contrário do lacerdismo e do brizolismo, que se sustentaram na identificação pessoal e imediata com os líderes carismáticos, o chaguismo se tornou sinônimo de uma política calcada na rotina do funcionamento de uma máquina baseada em redes de clientela e sustentada pelo acesso a bens públicos, a bica d’água, por exemplo. O sucesso dessa estratégia dependia, em larga medida, do controle que o governador pudesse exercer sobre o seu partido, o MDB, e sobre a Assembléia Legislativa.
Chagas Freitas foi bem sucedido em “empalmar” o MDB, porque as principais lideranças do partido de oposição à ditadura militar foram cassadas pelos atos institucionais, inclusive Brizola (1964) e Lacerda (1969). A partir de então, pôde pavimentar uma avenida que o levaria, em 1970, ao Palácio Guanabara. Habituado ao jogo rotineiro da negociação política, comandou, com mão de ferro, o ingresso de novos membros no partido por meio de um acompanhamento cuidadoso do processo de filiação partidária. Mais rigoroso ainda era o acesso aos cargos da comissão executiva regional, que desde então se encontrava nas mãos de políticos que lhe eram fiéis. A nova Lei Orgânica dos Partidos Políticos de 21 de julho de 1971, ao dar a qualquer membro do partido o direito de impugnar pedidos de novas filiações, bem como ao enfatizar a fidelidade partidária e o fortalecimento dos diretórios, acabou por estabelecer um maior controle vertical. A renovação da executiva do MDB-GB em 1972 apontou, de fato, para esse crescente controle, com a entrada de uma nova leva de fiéis parlamentares, os quais, em larga medida, deviam o mandato ao governador.
Com o Legislativo, Chagas Freitas buscou imprimir um padrão de relacionamento no qual a palavra de ordem era a rápida aprovação dos projetos do Executivo. Para tanto, contava com a atuação do presidente eleito da Casa, deputado Pascoal Citadino, por quem tinha grande “apreço e confiança”, e a quem garantiu “manter o diálogo o mais cordial possível”. Esse “diálogo cordial” foi de fato mantido, e Chagas Freitas conseguiu, com base em uma “maioria massacrante”, aprovar todos os seus projetos por larga margem de votos. O funcionamento azeitado dessa relação Executivo/Legislativo toma forma nas palavras do deputado Erasmo Martins Pedro, vice-governador da Guanabara, e um dos políticos mais próximos de Chagas Freitas, em depoimento prestado aos pesquisadores Marly Motta e Carlos Eduardo Sarmento, do CPDOC-FGV:
“Na hora da inauguração das obras, Chagas marcava uma data para um deputado e outra data para outro. Na data de um, o outro ficava lá no canto dele. O Dia dava cobertura, Chagas ia pessoalmente e dizia: “Vocês podem agradecer ao deputado fulano de tal pelo que ele tem feito no interesse da zona”. O deputado levava os seus cabos eleitorais, o seu pessoal. Na outra data, em outra obra, era a mesma coisa, com o outro deputado. Isso redundava em prestígio para os deputados e para o Chagas.”
Essa fidelidade à orientação do governador não advinha apenas da rígida legislação eleitoral então vigente, que punia com a cassação do mandato o parlamentar que votasse contra a orientação partidária. A aglutinação dos parlamentares emedebistas em torno da chefia de Chagas Freitas foi o resultado de um bem-sucedido trabalho de articulação de várias redes de clientela, estruturadas em torno de políticos que controlavam suas respectivas áreas de atuação, e tecidas com os fios da tradição familiar, da política de bairro e da vinculação com grupos religiosos e corporativos. Formou-se, assim, uma complexa rede clientelista, na qual o deputado, articulando um sistema baseado em uma teia de obrigações recíprocas, se tornava o mediador dos moradores de bairros, dos membros de corporações e de grupos religiosos junto à máquina governamental. Fundamentalmente em função do uso eficaz dos recursos de poder de que dispunha no Executivo, Chagas Freitas pôde articular essas várias redes e transformá-las no principal motor do que se convencionou chamar de “máquina chaguista”. Menos do que uma relação baseada em uma identidade pessoal, como a mantida pelos lacerdistas e brizolistas, a identificação com Chagas Freitas resultava de sua posição como patrono-mór dessa máquina política.
Discreto e reservado, mais afeito às conversas ao pé do ouvido do que aos discursos no palanque, à vontade na manipulação dos meandros da política local, porém desinteressado em conquistar espaços na política nacional, Chagas Freitas não sobreviveu aos novos tempos da redemocratização. Com a volta das eleições diretas para o governo estadual em 1982, o eleitorado carioca infringiu-lhe uma dura derrota, conferindo ao seu candidato, Miro Teixeira, o modesto índice de 14% dos votos, em contraposição aos 44% conferidos a Leonel Brizola, trazendo de volta ao Palácio Guanabara um líder carismático, personalista, de projeção nacional. Indevidamente relegado ao esquecimento, Chagas Freitas e o chaguismo revelaram uma longa sobrevivência, e seus ecos, como podemos ver, se fazem presentes até hoje.
Marly Motta é historiadora; professora aposentada da FGV-RJ.