Por Sonia Castro Lopes
“Educação não transforma o mundo. Educação muda as pessoas. Pessoas transformam o mundo.”
Este deve ou pelo menos deveria ser um ano festivo para a educação brasileira, pois comemoramos o centenário de nascimento de Paulo Freire (19/9/1921 – 2/5/1997), um de nossos maiores educadores, com atuação e reconhecimento internacionais. Freire foi o construtor da pedagogia dialógica, libertadora, que busca a transformação social. Em seu entender, o diálogo que se estabelece entre professor/aluno/ conhecimento requer uma atitude desafiadora capaz de levar à descoberta de novos saberes e a negação de modelos rígidos de pensamento. Freire apostou numa relação pedagógica que exige curiosidade, questionamento dos saberes elaborados pela classe dominante e a recriação do conhecimento pelo ponto de vista dos oprimidos, pois o trabalhador tem direito a acessar o conteúdo que é instrumentalizado contra ele. Formulou, portanto, uma pedagogia verdadeiramente revolucionária.
Em entrevista concedida ao jornal Estado de São Paulo, há cerca de um ano, o ministro Milton Ribeiro declarou que magistério é a profissão escolhida “por quem não consegue fazer outra coisa.” Demonstrando total ignorância sobre Paulo Freire, afirmou que “teve a pachorra de ler Pedagogia do Oprimido e desafiaria professores e acadêmicos para explicar onde (sic) ele quer chegar com as metáforas e valores do marxismo que tenta incluir dentro (sic) do ensino e da pedagogia” (Estadão, 24/9/20, p. 14). Percebe-se que estamos diante de mais um soldado empenhado em promover a guerra cultural que tanto agrada ao atual (des)governo. No entender desse ministro, Freire representa o que há de pior na educação, sendo responsabilizado pelo estado calamitoso em que se encontra o ensino no país. Talvez os leitores pouco familiarizados com o campo educacional não conheçam o pensamento freireano. Sem maiores pretensões, tentaremos recuperar, nos limites desse artigo, um pouco de sua trajetória e de suas ideias.
Considerado patrono da educação brasileira, Freire foi um advogado pernambucano encantado pelo magistério, para quem o analfabetismo no Brasil não seria um “câncer a ser extirpado”, um “mal a ser erradicado”, mas a expressão concreta de uma realidade social injusta. No pós-guerra despontou como referência para a educação popular, quando tínhamos cerca de 50 % de analfabetos entre a população brasileira. No contexto da guerra fria, das lutas contra a discriminação racial, sexual e cultural, dos golpes de Estado, do surgimento de lideranças revolucionárias na América Latina, de movimentos de descolonização na África e Ásia começam a surgir no Brasil os movimentos de cultura popular em grande parte apoiados por uma parcela da Igreja Católica que se voltava para as questões sociais.
Na condição de professor de Filosofia da Educação na Universidade do Recife foi convidado pelo governador Miguel Arraes para integrar o Conselho Estadual de Educação (1961). No início dos anos 1960, juntamente com sua equipe, trabalhou na criação de um novo sistema de alfabetização para ser aplicada à educação de jovens e adultos (EJA), pois partia do pressuposto que a educação libertadora não cabia nas cartilhas até então existentes. Em 1958 já havia apresentado num seminário em Recife seu “método de alfabetização” que aplicou na região de Angicos (RN) para alfabetizar trabalhadores rurais obtendo resultados animadores (cerca de 300 trabalhadores foram alfabetizados num curso de 40 horas).
Vivíamos então um contexto favorável a essas experiências democráticas. “Povo aprende a ler debatendo problemas” dizia a manchete dos jornais da época. Na verdade, o “método” de Paulo Freire consistia numa proposta dialógica baseada em palavras geradoras levantadas a partir do universo vocabular dos alunos. Nessa troca de vivências e idéias, o aluno tornava-se o centro do processo, aprendia a “ler” o mundo à sua volta, conscientizava-se, libertava-se daquela escola tradicional repleta de verdades e saberes que nunca levara em conta suas experiências e histórias de vida. Em 1963 foi criado o primeiro curso de alfabetizadores pelo método Paulo Freire que atraiu centenas de estudantes universitários em todo o país.
Convidado pelo presidente João Goulart para implantar e coordenar o Programa Nacional de Alfabetização, criado em janeiro de 1964, o projeto foi extinto dois meses depois pelo golpe civil-militar de 1964. Preso por 70 dias, Freire conseguiu ser libertado e exilou-se na Bolívia e no Chile onde permaneceu entre novembro de 1964 e abril de 1969, quando lançou a “Pedagogia do oprimido”, sua obra mais divulgada em todo o mundo. Do Chile transferiu-se para os Estados Unidos, onde lecionou pedagogia na Universidade de Harvard e, finalmente, radicou-se em Genebra, na Suíça. Ao longo dos anos 1970 visitou várias nações recém libertadas e realizou inúmeras palestras em países africanos. Conhecido internacionalmente e interditado no Brasil, Paulo Freire só retornou em 1980 para ser docente na PUC-SP e na Unicamp, quando integrou o grupo de intelectuais envolvidos na fundação do Partido dos Trabalhadores (PT) e tornou-se Secretário de Educação de São Paulo na prefeitura Luiza Erundina (1989-1993).
A teoria pedagógica de Freire é considerada revolucionária porque não se limita a inovações didáticas em sala de aula. Na verdade, essa concepção parte do pressuposto de que ‘educar é um ato político’ na medida em que exige respeito aos saberes do educando, rejeita qualquer forma de discriminação, requer convicção de que a mudança é possível e reconhece que a educação é, antes de tudo, ideológica. Freire apostou nas ‘diferenças culturais’ para entender a diversidade de ‘saberes’ que existem na sociedade. Assim, considerou arrogante a postura de quem desconsidera o saber popular e subestima o senso comum como conhecimento ‘menor’.
Praxis é o conceito-chave que perpassa toda a obra do educador. Trata-se de uma relação estreita que se estabelece entre a teoria e a prática educativa, entre o modo de interpretar a realidade e a vida e a prática que decorre dessa compreensão. Essa sinergia íntima entre teoria e prática é o que leva a ação educativa a transformar a sociedade. A metodologia freireana repousa em dois conceitos básicos: o diálogo e a leitura crítica do mundo, daí a contestação que suas idéias e práticas sofrem no contexto autoritário que marca nosso país nos dias atuais. Essa ‘leitura crítica do mundo’ se dá por meio de debates e diálogo dos alunos com seus professores, com seus colegas e com o próprio objeto do conhecimento. É necessário entrar em contato com os conteúdos historicamente produzidos, pois não se constrói conhecimento a partir do nada; porém, a visão crítica só se pavimenta na medida em que a teoria é confrontada com a empiria, com a realidade vivenciada por todos cotidianamente.
Freire faleceu em 1997 deixando uma obra extensa, da qual destacamos, entre outros, ‘Pedagogia do oprimido’, ‘Pedagogia da autonomia’, ‘Pedagogia da esperança’, ‘Educação como prática da liberdade’, ‘Conversando com educadores’, ‘A importância do ato de ler.’ Foi o brasileiro mais homenageado no exterior, com 35 títulos de ‘Doutor honoris causa’ de universidades americanas e europeias, além de receber diversos prêmios da UNESCO. Em 13 de abril de 2012, no governo Dilma Roussef, foi sancionada a Lei n. 12.612 que declarou Paulo Freire patrono da educação brasileira.
Esse é o educador que vem sendo demonizado pelo MEC. Seu crime? Lutar por uma educação popular que ensine o povo a pensar, tomar consciência do mundo ao seu redor e tentar mudar essa realidade tão injusta e desigual.