Construir Resistência
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Paraísos perdidos

Por Elianne Diz de Abreu

Na década de 80, eu vinha de férias sempre à Natal. Era uma delícia, praia limpa e larga, mar de águas mornas, algumas barracas com bancos e mesas de madeira, onde se comia caranguejo e tomava água de coco.
Gostava tanto daqui, que em janeiro de 2002, quando vivia entre Ipanema e Cabo Frio, pensei: Por que não viver em Natal?
Havia meu pai e irmãos que tinham vindo antes. Veio um, casou, veio o outro, ficou, veio o outro e trouxe o pai velhinho. Por que eu também não viria com os dois meninos? Pois não havia grandes vínculos no RJ.
Há vinte anos cheguei. Durante os dez primeiros anos, podíamos andar de ônibus tranquilamente. Nas ruas não havia perigo, aqui ou ali, uma ladra de carteira num bairro mais popular. Nada que nos atingisse.
A partir de 2013 a cidade começou a apresentar perigos: assaltos nas ruas e ônibus, algumas quitandas de bairro com grades nas portas. Não esqueço da primeira vez que vi uma senhorinha a vender através das grades. Que choque ver aquilo! Em Cabo Frio, antes de eu sair, conheci uma farmácia, que funcionava 24 hs atender através de uma gaveta de alumínio – o cliente não podia ver o atendente e vice versa.
Sempre fui sensível a essas cenas. Vivi num tempo em que enamorados recostados em carros trocavam carícias.
Vivemos hoje atrás de grades, em condomínios fechados. As ruas quase sem pedestres, pois é arriscado transitar a pé. Há que se esconder o celular na roupa íntima, sair sem nenhum adereço que pareça ter algum valor. Vive-se com medo em espaços abertos.
Esta semana a cidade toda está amedrontada. Desde terça-feira, dia 14, há atentados no Estado todo. 39 cidades do Rio Grande do Norte foram atacadas: ônibus escolares, ou não, incendiados, Unidades de Saúde atacadas por tiros, Fóruns com vidros estilhaçados, coquetéis molotov encontrados em repartições públicas, escolas particulares e Universidades com aulas suspensas pelo risco. “Tocaram o terror” aqui.
Há pânico em alguns momentos. Conheço pessoas que se abrigaram atrás das paredes mais sólidas da casa sob o tiroteio que as assombrava. Outros se agacham com filhos pequenos com medo de serem alvo de uma “bala perdida”. Uma jovem universitária foi atingida na rua e se abrigou numa academia de ginástica levando a realidade e medo a todos.
Um homem simples perdeu o único caminhão que tinha e não sabe como irá trazer o sustento para a família. Outro chora e diz que perdeu o que construiu numa vida inteira.
Por que esse caos?
Em 2013 chegou o PCC no Estado, No presídio houve dissidência e foi criado o Sindicato do Crime do RN. Hoje o Sindicato é a organização criminosa, hegemônica no Estado.
Há lugares comandados pelo PCC e outros pelo Sindicato do Crime. Soube que se uma pessoa, que mora sob o domínio do PCC, muda-se para o outro lugar dominado pelo Sindicato, morre. E vice-versa. Simples assim. Que valor tem a vida para esses criminosos? Não têm nada a perder, já vivem num tormento infernal. Morrem jovens. Cai um, segue outro no lugar.
Que valor tem a vida desses rapazes criminosos para a sociedade? Fica a pergunta.
Os ataques atuais vêm com reivindicações por melhores condições nas cadeias. Reivindicação mais do que justa, pois sabemos que nossas prisões parecem cadeias da Idade Média. Há superpopulação, falta de higiene, falta de atendimento médico, psicossocial… o que é feito ali para uma ressocialização? Nada!
Mas, penso, o que foi feito no Brasil nos últimos anos para a população menos favorecida? Nada! O que foi feito com o ensino público nos últimos anos? Nada! O crime começa no desamparo da infância dos não privilegiados, os que não têm muita escolha, sem educação, sem saúde, arrancando os dentes cariados pela desnutrição e falta de cuidado.
As reivindicações são justas, mas, sim, nada justifica os crimes. Pessoas inocentes estão sofrendo sem transporte público, sem postos de saúde abertos – só emergência abriram esses dias.
As duas facções, que vivem em confronto, fizeram um acordo de trégua entre elas, para provocar o caos.
Prometem cinco mil reais por cada ataque a prédios públicos.
Natal é um paraíso, assim como o Rio de Janeiro.
Como o Rio, tem o contraste do luxo com a pobreza. Em Ipanema eu ouvia tiros no Morro do Cantagalo, próximo de casa. Aqui temos a Praia do Meio, onde atrás de prédios de luxo – onde vive uma elite- temos o Bairro de Mãe Luiza – nome singelo que nos remete à uma senhora acolhedora – com sua vista maravilhosa do oceano, da lua cheia refletida no mar, e é um dos lugares onde mais há violência na cidade. Ali os mortos são invisíveis, os meninos do crime criados em Mãe Luiza.
É interessante, que os moradores antigos, que vivem ali desde criança, naturalizaram tiros e cadáveres encontrados nas ruas. Levam vida normal. A moça que veio de fora e me contou, entra em pânico, enquanto a vizinha sai para ir à Igreja, para comprar o pão, mesmo nesses dias de terror.
O pão nosso de cada dia.

Elianne Diz de Abreu é psicanalista, escritora de minicontos, blogueira…
Nasceu no Rio Grande do Sul. Jovem, amou e viveu a maternidade no Rio de Janeiro. Hoje envelhece na terra do sol- o Rio Grande do Norte.
Três rios e três vidas diversas.

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