Por Vera Iaconelli – Folha de S. Paulo
Freud não tinha razões para se iludir com a natureza humana. Três de seus filhos participaram da Primeira Guerra Mundial, na qual perdeu um sobrinho. Ele só escapou da perseguição nazista que antecedeu o segundo conflito mundial por obra e graça de Marie Bonaparte, princesa da Grécia e psicanalista.
Ele sentiu na pele a derrocada da pretensão civilizatória iluminista, que projetava os horrores da humanidade nos outros: basicamente nos povos originários a serem colonizados com a justificativa de que seriam selvagens. Mas quando as guerras se deram entre irmãos europeus ficou mais difícil sustentar a retórica eurocêntrica. Como se sabe, nos olhos dos outros, pimenta é colírio. A lavagem cerebral colonial é tão persistente que ainda existe quem se espante com a guerra na Ucrânia como se conflitos bélicos fossem coisa do sul global.
Freud foi mais longe, para desconsolo dos otimistas de plantão, e disse que o mal-estar na cultura é resultado do próprio processo civilizatório. A exigência de que renunciemos a parte de nossas satisfações pulsionais sempre cobra a fatura. Sua falta, por outro lado, é a barbárie. Ruim com, pior sem. Nos resta identificar como se apresenta o mal-estar de cada época para buscarmos as melhores formas de enfrentá-lo.
Mas a humanidade também é capaz de prodígios de criação que embalam nossa imaginação e engrandecem nosso espírito. Goethe, Shakespeare e Cervantes eram faróis a inspirar Freud em busca de valor na combalida humanidade.
Os grandes criadores da humanidade têm gana por aprender, resolver problemas, criar e receber o reconhecimento devido, o que os leva a um ciclo de angústia e satisfação. O prazer da descoberta, o reconhecimento social e o poder — financeiro e político — seduzem a ponto de ofuscar o interesse pelas consequências. Se algo espetacular pode ser criado, por que deveríamos nos importar com os efeitos da criação, a glória não justificaria tudo?
Atendi descendentes das vítimas da explosão das bombas atômicas em Hiroshima e Nagasaki em mais de uma ocasião. Ouvi os relatos de sofrimento e adoecimento psíquico de familiares de sobreviventes, pais e avôs que, quando crianças, assistiram a vizinhos falecerem na sua porta sem que pudessem socorrê-los. Herdaram também riscos consideráveis de produzirem câncer em decorrência da radiação. É uma geração que viu o esplendor de nossas capacidades intelectuais e imaginativas serem usadas para construir a maior expressão da violência humana até então. Como Primo Levi, que tentou em vão comunicar a máquina de desumanização criada pelos nazistas, também essas vítimas tentam nomear o inominável da experiência de aniquilação anônima e programática de um ser humano por outro.
O que mais se pode falar sobre tamanha tragédia, que fará 78 anos no próximo dia 6 de agosto?
O filme “Oppenheimer”, sobre o pai da bomba atômica, tenta uma abordagem. O ator Cillian Murphy sustenta magistralmente um personagem no qual convivem genialidade, lealdade para com os seus e incapacidade de se colocar no lugar das vítimas de sua criação até que seja tarde demais — e talvez nem assim, pelo potencial psicotizante. O autor da bomba não está só, logicamente. Uma empreitada dessas é sempre uma ação coletiva e gigantesca, como foi a escravidão e o holocausto. Christopher Nolan, diretor dessa obra-prima, não dá ao espectador direito à catarse, fazendo-o experimentar uma profunda tristeza que o acompanha durante e depois da sessão. Como nas melhores obras, essa tristeza não vai sem angústia e reflexão.
Filme obrigatório para aqueles que insistem em encarar a ciência como um brinquedo lucrativo e cujas consequências negligenciam acintosamente.
Vera Iaconelli é Diretora do Instituto Gerar de Psicanálise, autora de “O Mal-estar na Maternidade” e “Criar Filhos no Século XXI”. É doutora em psicologia pela USP.