Por Sonia Castro Lopes
Quem são os inocentes do Leblon? Para Drumond/Chico Buarque são os alienados, os que não viram o navio entrar, os que pisam na areia quente, passam um óleo suave nas costas e… esquecem. Para Marina Lima, cantora e compositora, os inocentes são os que não sabem de você, nem nunca vão querer saber, porque as luzes do hotel que tem seu nome acendem todas as noites a despeito de suas dores e de seus sentimentos.
Há cada vez mais ‘inocentes’ pelas ruas do Leblon. Inocentes que fingem não ver outros inocentes, aqueles que habitam as calçadas, dormem sob marquises e vivem da caridade hipócrita de quem lhes dá uma nota de dois reais para se livrar da culpa atávica que costuma consumir a ‘elite’ desse país.
Manoela é uma dessas crianças que vagam pelas ruas abordando os transeuntes. Mirradinha, aparenta uns seis anos, mas talvez tenha um pouco mais, a medir pelo desembaraço e capacidade de persuasão. Seguiu-me como uma pequena sombra dentro do supermercado. Expliquei-lhe que não tinha dinheiro, levava apenas cartão. Não se intimidou e, para meu espanto, ao invés de solicitar as famosas guloseimas tão apreciadas pelas crianças, arrastou-me até a seção de grãos e, de forma absolutamente convincente, pediu que lhe comprasse arroz e feijão.
Tentei negociar: ou um ou outro. Ao ver que a menina devolvia o feijão à prateleira, fiquei envergonhada da minha mesquinez e, num acesso de culpa, coloquei no carrinho não apenas arroz e feijão, mas também pão, leite, biscoitos e algumas frutas.
Perguntei a Manoela onde morava. “Morro do Alemão” me respondeu, com uma brejeirice difícil de definir. Todo seu corpo falava, saltitante, como se estivesse à vontade naquele lugar e naquela situação. Mas o que realmente me impactou foram seus olhos. Ao mesmo tempo firmes e doces, humildes e altivos.
Receei que estivesse sozinha, assim tão distante de casa, mas ela apontou para o outro lado da rua, onde sua irmã mais velha desempenhava a mesma função, enquanto a mãe, com um bebezinho ao colo, as esperava sentada na calçada mais adiante.
Ao sair do mercado pude avistar a mãe e a irmã. Alegres e famintas, ali mesmo na calçada talvez tenham feito a primeira refeição do dia: leite, banana e biscoitos. No caminho para casa, observei com mais atenção as pessoas em situação de absoluta vulnerabilidade social sob as marquises dos prédios de um dos bairros mais valorizados do Rio. E eram muitos… Quase todos ‘perigosos’ para os moradores que aceleravam o passo para não serem molestados ou seguravam a bolsa com firmeza, tamanho o medo de serem assaltados.
Dias depois, uma dupla chamou minha atenção. Germano, 33 anos, aparentando muito mais, me disse ser jardineiro e ter como único parente uma tia que mora em Itatiaia. Tudo o que deseja é obter dinheiro para comprar uma passagem e receber dela um pouco de atenção e carinho. Anderson, 35, vive na rua porque não possui família. Mecânico desempregado gostaria de fazer um curso e poder comprar as ferramentas necessárias para consertar motocicletas. Seria eu, nessa conversa, a inocente? Talvez… Mas o que me comoveu realmente foi a presença do fiel companheiro de ambos, o cachorrinho Simba, que eles não doam nem vendem por dinheiro algum.
Simba me seduziu completamente. Viralatinha caramelo, focinho preto, três meses, meigo, brincalhão… Aí não teve jeito. Resolvi parar e dar uma moral para a ração do bichinho ou, vai saber, para o almoço dos donos. Em seguida, passei na petshop mais próxima e comprei um saco de ração. Sabendo do caso, a dona da loja resolveu doar um remédio antipulgas e o veterinário se ofereceu para aplicar as vacinas contra raiva e cinomose, doença altamente contagiosa que costuma vitimar filhotes. Enfim, formou-se uma rede de solidariedade para proteger mais um inocente dos flagelos de quem vive nas ruas.
Germano, Anderson e Simba, assim como Manoela e os seus são personagens invisíveis para os ‘inocentes’ do Leblon que param curiosos para perguntar uns aos outros: Por que esses homens fortes preferem viver de esmolas a trabalhar? Por um instante pensei o que diriam a respeito da mãe de Manoela. “Preciso de quem faça o serviço lá em casa… aposto que ela não quer trabalhar, mas fazer filhos sabe…”
Mondo cane é isso aí.