Os bons velhinhos da ditadura

Por Hugo Souza – Come Ananás

Chile manda general nonagenário para o xadrez por participação na Caravana da Morte da ditadura de Pinochet. Por aqui, “morrem na cama, de velhinhos, bem aposentados, todos os torturadores brasileiros”.

Ilustração: Rubem Grilo

Aos 92 anos, o general reformado Santiago Sinclair vai para o xadrez. Azarado por ser chileno, e não brasileiro, Sinclair foi condenado em 2020 por comandar o assassinato de 12 líderes camponeses durante da ditadura de Augusto Pinochet. Houve recurso. No último sábado, 17, um tribunal do Chile confirmou a sentença.

Nos próximos dias, Santiago Sinclair vai começar a cumprir 18 anos de prisão. Punido antes tarde do que nunca, o general deve morrer no cárcere – isto do que o seu antigo chefe, o “generalíssimo”, se safou.

Vão em cana junto com Sinclair, no âmbito do mesmo processo, Juan Chiminelli (86 anos), Pedro Espinoza (90) e Emilio de la Mahotiere (86). Todos os quatro integraram a Caravana da Morte, cruenta operação de caça a opositores em várias cidades do interior do Chile desencadeada logo após a instalação da ditadura pinochetista, em 1973.

No Brasil, por ocasião dos 40 anos da Lei de Anistia, em 2019, o jornalista Urariano Mota contou que na paz do bucólico bairro de Casa Forte, no Recife, na primeira década do século XXI, viviam no mesmo prédio a filha do líder camponês Francisco Julião e dois conhecidos repressores da ditadura brasileira, o coronel Darcy Villocq e o delegado Wandenkolk Wanderley.

“Os mais jovens não sabem, mas Villocq foi quem arrastou Gregório Bezerra por uma corda, Villocq foi quem espancou o bravo comunista sob cano de ferro, e esteve a ponto de enforcá-lo em praça pública, no Recife, em 1964”.

“Wandenkolk havia sido delegado da polícia civil em Pernambuco, um sujeito especialista em usar alicate para arrancar unhas de comunistas no Recife”.

“Pois ficavam os dois companheiros a cavaquear, pelas tardes, na paz do bucólico bairro de Casa Forte. Quanto sangue impune havia naquelas tardes de paz burguesa”.

Em seu artigo sobre “os bons velhinhos da ditadura”, Urariano Mota pontuou uma nuance especialmente insólita deste “brilho de ironia involuntária da cena brasileira”, a ele relatada pela filha de Francisco Julião:

“Uma empregada doméstica, no prédio em que Villocq morava, dizia que ele parecia um bebê, de tão inofensivo e pacífico na velhice. Mas era tão gracioso – atenção, ficcionistas, atentem para as perdas dos dentes e garras das feras na velhice –, ele era tão convidativo para o coração bondoso da moça, que ela brincava muitas vezes com Villocq, dizendo:”

“Eu vou te pegar, eu vou te pegar”.

“E o bebezinho, o bom velhinho sorria diante do terror de brincadeirinha, sorria simpático já sem a força de espancar com ferro e obrigar um homem a pisar em pedrinhas descalço, em carne viva, depois de lhe arrancar a pele dos pés com fogo de maçarico”.

Wandenkolk Wanderley morreu em 2002, quando tinha 90 anos de idade. Darcy Villocq morreu dez anos depois, em 2012, aos 93.

“Morrem na cama – arrematou Urariano Mota -, de velhinhos, bem aposentados, todos os torturadores brasileiros”.

 

Artigo publicado nesta segunda-feira, 19, no Come Ananás: https://wp.me/pd16NI-7TW

 

 

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