Por Marly da Silva Motta
Possa o Rio de Janeiro, mesmo com a transferência da capital da República para Brasília, continuar como Distrito Federal. Não há incompatibilidade, nem proibição, nem veto, na Constituição relativamente à existência de dois Distritos Federais na comunidade brasileira.
Na sessão da Câmara dos Deputados do dia 10 de fevereiro de 1960, o deputado José Talarico, representante do PTB do Rio de Janeiro, às vésperas de deixar de ser Distrito Federal, não hesitou em propor que a cidade conservasse seu status de capital, pregando, assim, a existência de dois Distritos Federais. Mais de 61 anos depois, a mesma proposta reaparece chancelada na coluna de Merval Pereira na edição do jornal O Globo, deste domingo, 15 de agosto. A argumentação do jornalista se assemelha muito com a de outro deputado, dessa vez o paranaense Munhoz da Rocha que, em agosto de 1959, apresentou o projeto de criação da Cidade Nacional do Rio de Janeiro. Justificando a necessidade desse estatuto especial, o deputado marcava a profunda identificação que havia entre o país e sua capital: “A identificação do Rio com o Brasil penetrou tão profundamente o espírito de sua metrópole que as grandezas do Rio são as grandezas do Brasil; as fragilidades do Rio são as fragilidades do Brasil; o calor do Rio, o calor do Brasil; a paisagem do Rio, paisagem do Brasil….” Nesse sentido, a argumentação de Munhoz, defendida há mais de seis décadas, segue na mesma linha do artigo de Merval: aqui estão sediadas instituições culturais de dimensão nacional, como a Biblioteca Nacional, o Museu Nacional de Belas Artes, o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, a Academia Brasileira de Letras e, por isso mesmo, “não é possível apagar o traço de vida nacional com que um longo esforço de vários séculos marcou a sua capital”. Para resumir: mesmo perdendo a condição legal de capital para Brasília, o Rio de Janeiro deveria manter a aura da capitalidade, continuando a exercer a função precípua de cidade-capital, qual seja a de encarnar a síntese da nação, para além de uma dimensão político-administrativa; não era apenas a nova identidade para o Rio de Janeiro que estava em pauta. A questão era mais ampla: como seria o Brasil sem a sua tradicional “vitrine”, sem o seu “centro irradiador de civilização”?
Como sabemos todos, essa “matéria tormentosa”, como muitos deputados chamavam o debate sobre o futuro da antiga capital, acabou desembocando na criação do estado da Guanabara em abril de 1960. O que estaria na mesa a partir de então seria a transformação efetiva da Guanabara em um estado federado, “como outro qualquer”. O que eu chamo de projeto da estadualização da Guanabara acabou sendo interrompido em 1975, pela sua fusão com o Estado do Rio, e a mudança, mais uma vez, de status na federação brasileira. Seria agora a capital do novo estado federado, o município do Rio de Janeiro, com o prefeito indicado pelo almirante Faria Lima, interventor nomeado pelo general Geisel para governar o Rio de Janeiro (1975-79).
Falar de “crise do Rio” não é exatamente uma novidade para uma cidade de quem se diz que “de dia falta água, de noite falta luz”. No entanto, podemos situar na década de 1990 uma crescente percepção de que as dificuldades vividas pela cidade possuíam origens mais profundas, ligadas às “perdas” a ela infringidas, ao longo das últimas décadas, pelas sucessivas transformações em seu estatuto político-jurídico: depois de mais de um século como capital imperial e Distrito Federal republicano, havia se transformado, sucessivamente, de estado federado a município. Ora, se os “problemas do Rio” residiam no passado, quem sabe as “soluções” não poderiam ser aí encontradas?
Encabeçado por autoridades públicas cariocas, como o então prefeito Marcello Alencar (1989-93), e engrossado pela mídia, o Movimento Rio-capital, que defendia a volta da capital federal para o Rio de Janeiro, se beneficiou da realização na cidade da Conferência do Meio Ambiente, a chamada ECO-92. A memória do passado de cidade-capital foi então acionada no sentido de provar que esta era a “verdadeira vocação” do Rio: afinal, os destinos do país e do mundo passariam pela cidade, que estava longe, portanto, de ser um “município qualquer”.
Se o retorno da capital do país para o Rio parecia inviável, o mesmo não acontecia com a possibilidade de a fusão ser desfeita, e a Guanabara, cantada em prosa e verso na música Saudades da Guanabara,[1] poderia ressurgir das cinzas como uma fênix. Não por acaso, o prefeito Cesar Maia trouxe de volta à ribalta o nome de Carlos Lacerda, o primeiro governador eleito do estado (1960-65), e visto por parte da sociedade como “o melhor administrador que a cidade já teve”. Este movimento ganhou amplitude com a eleição de dois governadores oriundos de Campos, ou seja, do interior fluminense: Garotinho (1999-2003) e Rosinha (2003-07). Essa amplificação teve como canal privilegiado certos setores da mídia carioca – em especial o jornal O Globo –, e resultou no chamado Guanabara Já/Autonomia Carioca.
Tanto pelas colunas assinadas, quanto pelas cartas publicadas na seção Cartas dos Leitores, desfilaram opiniões e argumentações de variado teor, mas que tiveram como solo comum uma memória povoada de representações construídas ao longo do tempo sobre o passado do Rio e suas relações com o antigo Estado do Rio.[2] Nesse sentido, é bastante sugestiva a ilustração usada na coluna do jornalista Luiz Garcia, intitulada “Fusão, confusão e desfusão”,[3] em que se apresenta uma moça bem-arrumada e elegante acorrentada a um caipira pobre e mal-trajado, cada um apontando em direção oposta. Nem houve necessidade de legenda para se identificar quem é quem nessa relação desigual.
O que fazer diante desse debate que parece ter sete vidas? Antes de tudo, mostrar que os eventos dessa história foram sugados para o terreno fluido e afetivo da memória, e feitos prisioneiros de um círculo vicioso que torna a cidade refém de um passado percebido como uma “idade do ouro” mítica e, por isso mesmo, submetida ao pipocar do noticiário do dia-a-dia e incapaz de projetar seu futuro. A solução, me parece, é uma só: o passado do Rio tem ser deslocado do terreno da memória e lançado no território da história, para que ele pare de nos assombrar e nos permita analisar a dita crise de maneira mais crítica e sofisticada.
Notas da Autora
[1] Motta, Marly Silva da. Saudades da Guanabara: o campo político da cidade do Rio de Janeiro (1960-75), Rio de Janeiro, Editora FGV, 2000.
[2] São as seguintes as colunas do jornalista Merval Pereira publicada em O Globo: Autonomia carioca, 29/5/2004; Cidade global, 30/5/2004; Contra a desfusão, 9/6/2004; Só o Rio vota, 10/6/2004.
[3] A coluna citada foi publicada em O Globo, de 11/6/2004.
Marly Motta é historiadora; professora aposentada da FGV-RJ.
Resposta de 0
Parabéns professora Marly da Silva Motta, foi muito interessante constatar essa ideia de reparação para o Rio de Janeiro, lendo recente a psicanalista Keehl fiquei com a impressão q temos um grande ressentimento em relação a perda de ser capital para e do Brasil é q nunca o resolveremos sem apagar esse ressentimento, abc