Por Alex Solnik
Uma coisa de que não se pode acusar Mino Carta é de ser preguiçoso, muito longe disso, trabalhava (ainda trabalha), feito um cão, ele lia linha por linha, lauda por lauda, matéria por matéria do que seria publicado na sua revista, com olhos de lince, um lápis na mão direita sempre pronto para riscar uma palavra e colocar outra no lugar, ou cortar uma frase, um parágrafo, o que sempre melhorava o texto, e lá estava ele, na sua poltrona favorita, na sua posição favorita, sentado sobre a perna direita, quando parou de ler e me questionou, com ar de reprovação:
“Você tem certeza que ele disse isso?”
Eu tinha acabado de voltar de Belo Horizonte.
Logo ao descer no aeroporto de Confins, fui direto a um quiosque da secretaria de Turismo, pedi à mocinha que me atendeu um nome de hotel no centro da cidade, ela estava de terninho azul, acho que um quepe na cabeça, ou estou confundindo com a aeromoça?, muito simpática, muito gentil, deu o nome do hotel, e perguntou como eu iria até lá, eu disse “de táxi”, ela perguntou se eu podia lhe dar uma carona, “é claro que sim”, fomos conversando aquelas trivialidades de quem conversa pela primeira vez, sobre a cidade, sobre o tempo, “você é mineira?”, “sim”, em poucos minutos o táxi encostou na frente do hotel e então ela perguntou:
“Posso subir com você?”
Acho que ninguém diria não a uma mocinha simpática como ela, mesmo sem ainda nem saber seu nome, fizemos a ficha na portaria, subimos, paramos num andar alto, talvez o oitavo e então ficamos a sós no quarto, o que aconteceu entre nós não importa, garanto que nunca tive de fazer exame de DNA, e a certa altura vimos, da janela, passar lá embaixo, na avenida, o cortejo fúnebre de Tancredo Neves.
O país vivia atônito, em transe, era um país de zumbis, ninguém queria acreditar que aquilo era verdade, que o homem que nos salvou da ditadura tinha tido um treco às vésperas da posse, mas como?, foi atentado?, há testemunhas?, depois vieram aquelas cirurgias, uma, duas, sete, misturadas a teorias da conspiração, dezenas de repórteres na porta do Hospital do Coração, o porta-voz sempre dando esperanças, a cada cirurgia ele estava melhor, mas de repente entrava na faca de novo, a uma certa altura o cirurgião-chefe, que ganhou fama instantânea, Walter Pinotti, ao me receber em seu apartamento foi categórico, depois da décima-primeira cirurgia:
“Salvei a vida do Tancredo!”
Era uma quinta-feira à noite.
Na segunda-feira, Tancredo estava morto.
Nunca houve um funeral como o dele, nunca tantos brasileiros choraram tanto, o país parou, só se ouvia Milton Nascimento e Fafá de Belém, “Coração de Estudante”, Hino Nacional, o país unido pela dor, o funeral começou em São Paulo, um cortejo interminável, depois foi a Brasília e então, três dias depois, estava chegando a Belo Horizonte.
À noite, fui ao Palácio da Liberdade procurar assunto para a minha matéria, era como garimpar pepitas de ouro em Serra Pelada, conversar com um, com outro, todas as figuras da República estavam lá, todo mundo com aquela cara cinzenta, aquele inconformismo e as incertezas, o que vai ser agora sem ele, Sarney é confiável?, estavam lá os indicados a ministros, sem saber se seriam confirmados por Sarney ou não, e ninguém queria falar nada, nem em “off”, além daquilo que se diz quando morre alguém tão importante.
Eu estava parado, sozinho, atrás de uma grande coluna, prestando atenção na conversa entre o senador Fernando Henrique Cardoso e seu xará, Fernando Lyra, futuro ministro da Justiça, ou não, eu não estava escondido, mas eles não me viam, a coluna impedia, quando o senador disse ao futuro ministro:
“Sarney não vai fazer nem dois por cento do que Tancredo faria”.
Foi essa frase que paralisou Mino Carta, ele me encarou com aquela expressão que eu já conhecia e perguntou, não como quem quer saber a resposta, mas como quem ainda não a ouviu e não gostou:
“Você tem certeza que o senador Fernando Henrique disse isso?”
Eu confirmei, claro que sim, ele disse isso, eu estava atrás da coluna, ele não me viu, eu não tinha gravador, mas jamais iria esquecer uma frase como essa, uma frase como essa, no funeral do Tancredo, seria manchete em qualquer jornal, ninguém mais ouviu, só eu, é nossa, exclusiva, pensei que enfim faria jus à sua célebre frase – “vá e se cubra de glória” – mas Mino me enquadrou em outra expressão sua – “fanático do apocalipse” – e concluiu:
“Já está querendo criar uma intriga mal a Nova República está começando”.
E riscou a declaração.
Minha pepita de ouro foi para o lixo.
E a Nova República estava salva.