Por Beatriz Herkenhoff
Nesse tempo de isolamento tenho refletido sobre o apego e o desapego, sobre o preenchimento dos vazios e a organização dos espaços por onde transitamos e vivemos.
Nossa casa é a expressão do nosso ser. Nela está contida nossa história pessoal e familiar, amores vividos com intensidade. Também momentos de separações, de perdas e de elaboração de lutos. Memórias alegres da casa cheia com crianças e jovens circulando e criando momentos mágicos.
Nas paredes de nossa casa estão gravadas experiências de plenitude, de alegria e de gratidão. Recordações de festas, happy hour com amigos, celebrações religiosas, almoços em família, do cheiro e cores dos alimentos preparados com tanto amor e delicadeza. Lembranças dos obstáculos superados e de conquistas que reafirmam nossa autoestima e potência de vida.
Em 2016 tive acesso ao livro de Marie Kondo “A mágica da arrumação – a arte japonesa de colocar ordem na sua casa e na sua vida” (2015). Naquela ocasião tinha acabado de me aposentar e foi muito rico usar a metodologia proposta para descartar e ressignificar cada objeto que compunha minha casa.
Nesse momento de confinamento, em que passamos a maior parte do tempo em nossa casa, resgatei dicas desse precioso livro para dar um novo colorido ao meu espaço. Para Marie Kondo, organizar tem o objetivo de restaurar o equilíbrio entre as pessoas, seus pertences e a casa onde moram.
Com esse espírito, decidi organizar minha casa em 2016. Pensei que iria encontrar pouca coisa para descartar, pois sempre fui considerada organizada e não sou consumidora voraz. Nunca acumulei roupas, utensílios ou outros objetos decorativos e sou bem desapegada na hora de decidir sobre o que descartar.
Mas, surpreendi-me! A técnica proposta é muito interessante. Ela orienta para decidirmos o que manter e o que descartar por categoria, começando pelas roupas, papeis, livros, utensílios e por último objetos afetivos, com os quais temos vínculo emocional.
O segredo é só mudar de categoria quando eliminamos tudo o que queremos da anterior. É tirar tudo do armário, pegarmos em cada objeto perguntando: essa roupa (papel, livro, enfeite) me dá alegria?
O fato de pegarmos no objeto tem o sentido de energizá-lo e estabelecermos uma relação de gratidão, de resgate do significado daquele objeto em nossa vida, mas, também de desapego, da coragem de despedir, quando ele já não nos traz alegria e felicidade. Para Marie Kondo, a emoção genuína da alegria está no corpo e nos pertences. Por isso, descartar aquilo que não nos faz sentir bem gera felicidade.
A mágica da organização da casa
É pegar em cada objeto e perguntar se ele me dava alegria foi muito significativo e terapêutico. Descobri que tinha guardado muito mais do que imaginava. Que era mais apegada do que supunha.
Descartar é um processo decisório que diz respeito aos nossos sonhos e projetos. O que queremos ser? Em que aspectos queremos mudar?
A decisão sobre que objetos desejamos manter é, na verdade, uma decisão sobre que tipo de vida desejamos viver. Quando desapegamos de coisas significativas, fechamos ciclos, nos despedimos de um passado que ainda nos amarra e impede de viver um presente mais leve. Quando guardamos coisas pensando que iremos precisar delas no futuro, ficamos também apegadas a um futuro que poderá não acontecer.
O apego me prende ao passado e ao futuro e me impede de focar no presente. O que é realmente fundamental para a minha vida? Preciso guardar e acumular tantas coisas?
E foi isso que fiz naquela ocasião quando doei roupas, sapatos, livros. Joguei fora apostilas de cursos que ministrei como professora e que ainda guardava porque achava que um dia iria precisar.
Nesses gestos, pude me despedir de minha profissão, da alegria, do prazer e da plenitude que senti nos 33 anos em que fui assistente social e professora universitária. Sou grata aos meus colegas de profissão e de trabalho, sou grata aos meus alunos. Mas, tive que fechar processos para ir em frente!
Ao agradecer por tudo que vivi, eu me libertei do passado para ficar mais inteira no aqui e no agora. Tive que me desapegar para encontrar o novo que eu não conseguia perceber.
O apego é limitante, nos faz ficar estagnados no tempo e em pensamentos saudosistas. O apego pode nos transformar em acumuladores. Acumulamos tanto que nos perdemos em nosso próprio espaço físico e existencial.
Quando organizamos a casa, o ar que circula nela fica mais limpo e fresco. Quando o ambiente está em ordem, ganhamos tempo para fazer as coisas que nos dão prazer.
O destino que nos conduziu a cada um dos nossos pertences é precioso e sagrado. Por isso é importante despedir daquele objeto com gratidão e desejar que faça uma bela jornada daqui em diante.
Tudo na vida é passageiro e transitório. Deixar ir é um movimento que liberta. O efeito da organização pode transformar nossa vida.
Em tempos de #pandemia, em que circulei muito pouco. Minhas roupas ficaram guardadas, usei o mínimo do mínimo. Mesmo procurando ficar bonita e arrumada dentro de casa, dez mudas de roupa foram suficientes para passar o primeiro ano de isolamento. Percebi como precisamos de menos para viver, como podemos contribuir para que a fartura seja distribuída de forma mais igualitária.
Lembrei-me de Marie Kondo e esvaziei novamente o armário para pegar em cada peça de roupa, agradecer e me despedir quando percebia que não teria tanta serventia. Ao fazê-lo, relembrei de momentos de muito amor e prazer que aquelas roupas me proporcionaram, mas, percebi que tinham cumprido o seu papel.
De agora em diante elas aqueceriam e alegrariam a vida de outras pessoas. E muitas, por estarem passando por momentos de dificuldade financeira, sentiriam um alento e um toque com a chegada de roupas coloridas e afetuosas.
As minhas roupas carregam muita energia positiva. Ao desapegar-me e doá-las, a minha benção sempre chega ao novo dono. Eu amo quando dou um alimento na rua e o pobre que recebe me abençoa poderosamente. Abro os braços para receber aquelas palavras de gratidão.
Nesse movimento de organização da casa na #pandemia, os livros desapareceram da minha estante, transformaram-se em objeto de circulação. Formamos um grupo de familiares e de amigos em que os livros vão passando de mãos em mãos, de casa em casa. Os livros cumprem sua verdadeira missão quando ao invés de ficarem enfeitando as estantes, tocam um número maior de corações com suas histórias.
Ainda mais nesse momento de isolamento, em que é preciso sonhar e mergulhar nas diferentes formas artísticas para resgatarmos a esperança e alegria de viver. O desapego abre espaço para novos sonhos.
E vocês? Como estão organizando sua casa e sua vida? Como estão conversando com os objetos (roupas, utensílios, enfeites, livros) que tiveram um significado fundamental em sua vida, mas, que agora podem sair pelo mundo alegrando outras vidas?
O que falo sobre objetos, se refere também ao amor. O amor desapegado, cuida, protege, é terno, alegre, livre, harmônico. Permite que o outro cresça, que vá embora, que faça sua passagem para o mundo adulto.
Libertamos os que amamos com o desapego. O amor apegado é possessivo, ciumento, controlador, raivoso porque não pode perder. Aprisiona e gera dependência afetiva.
A forma como vivo o apego e o desapego no amor, vai se refletir também na relação que estabeleço com os objetos. Que tal aproveitar esses tempos difíceis e dar um salto qualitativo no nosso jeito de ser e estar nesse mundo? Que sonhos renascem?
Beatriz Herkenhoff é doutora em serviço social pela PUC São Paulo. Professora aposentada da Universidade Federal do Espírito Santo.
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Amei o texto.
Muito obrigado por ensinar sobre o amor desapegado.
Gostei muito! Sou desapegada e não sabia. Gosto de acumular mas uma vez por ano faço o desapego dos objetos.
Que texto inspirador! Amei!
Sempre fui considerada organizada e desapegada pelos que estão próximos, mas lendo o seu texto cheguei à conclusão de que devo dar uma grande geral nas minhas coisas. Posso diminuir muito!
Também usei pouquissimas peças de roupas durante a pandemia. Dei um tanto, mas existem outras que podem circular.
E a ideia dos livros? Amei. Quanta inspiração você me traz!