Por Antonio Jorge Gonçalves Soares
“O Corpo da Mulher como Campo de Batalha”, do dramaturgo romeno Matei Vișniec, é uma obra teatral que aborda a violência de gênero em tempos de guerra, particularmente durante o conflito na Bósnia dos anos 1990.
A peça é uma análise crua, dura e sensível das cicatrizes físicas e emocionais deixadas pela guerra, explorando o trauma das mulheres que se tornam vítimas de violência sexual. Dorra, uma das personagens principais, encarna uma mulher bósnia que sofreu estupro durante a guerra. Ela é atendida por Kate, uma psicóloga americana enviada para ajudar as vítimas. Dorra representa as mulheres que enfrentaram a brutalidade e a desumanização do estupro usado como arma de guerra. No texto de Vișniec, o corpo da mulher é uma metáfora poderosa, sugerindo que, durante a guerra, ele se torna um campo de batalha, onde se inscrevem as violências e os abusos.
A declaração de independência da Bósnia e Herzegovina da Iugoslávia, em março de 1992, fez eclodir uma guerra civil que durou até 1995. “Os vizinhos” de diferentes etnias – bósnios (muçulmanos), sérvios (cristãos ortodoxos) e croatas (cristãos católicos) –, que habitavam a antiga Iugoslávia e viviam de forma civilizada, passaram a protagonizar os horrores de um dos maiores conflitos étnicos no Séc. XX.
O estupro de mulheres foi uma das armas dos contendores no conflito na Bósnia. Essa estratégia de utilizar mulheres, sequestrando ou estuprando, para humilhar os inimigos é um recurso que remonta aos tempos mais antigos, e essa prática tem sido documentada em quase todas as grandes guerras e conflitos conhecidos no mundo.
O corpo da mulher, nesse caso, é objetificado como posse masculina, e o ataque sexual dirigidos a ela se torna motivo de orgulho dos guerreiros na pilhagem imposta ao inimigo.
Os casos de estupro recentes, protagonizados por jogadores brasileiros, estão na pauta do dia. Daniel Alves esteve preso por 14 meses na Espanha e atualmente está em liberdade provisória naquele país sem direito a se ausentar do território espanhol.
Robinho, condenado a 9 anos de prisão em 2022 na Itália, cumpre pena no Brasil em regime fechado. Cuca e seus companheiros do Grêmio, Henrique Etges, Eduardo Hamester e Fernando Castoldi, teriam cometido um estupro coletivo contra uma menina de 13 anos em 1987, num hotel em Berna, na Suíça.
Em 1989, Cuca, Etges e Hamester foram condenados à revelia a 15 meses de prisão por atentado ao pudor com uso de violência, enquanto Castoldi foi absolvido da acusação principal, mas condenado por estar envolvido no ato. Nunca cumpriram pena. Em 2023, o Tribunal Regional de Berna-Mittelland reabriu o caso, tentou localizar a vítima, Sandra Pfäiffli, e descobriu que ela não estava viva. Seu herdeiro, Sven Sghluep, optou por não entrar no processo.
Em 3 de janeiro de 2024, a Justiça suíça anulou a condenação de Cuca e de seus parceiros. A decisão de anulação não abordou o mérito da acusação, mas apontou falhas processuais, como a ausência de defesa adequada para os acusados na época do julgamento. Em 2023, sob pressão da torcida corinthiana, Cuca se viu forçado a pedir demissão da função de treinador do clube.
Esses casos provocam o debate sobre o tipo de socialização que jovens-atletas recebem na sociedade e no futebol de homens. Sabemos que não há uma relação direta entre futebol e a cultura do estupro, pois esse crime está na sociedade, e as maiores vitimas são meninas no seio de suas próprias famílias. Apesar desse tipo de crime e desvio ser um fenômeno social, reitero a pergunta: o que a formação no futebol de homens pode auxiliar na construção de subjetividades de “masculinidade intensa” que lê o corpo da mulher como troféu ou campo de batalha?
Antes de ensaiar uma resposta parcial para essa pergunta, pois sei que não darei conta de respondê-la de forma mais densa, devo ponderar que a forte repercussão e protesto dos casos de estupro no futebol (brasileiro e mundial) está diretamente associada às agendas da política e dos movimentos sociais que assumiram a crítica às formas de dominação masculina, ao machismo, à misoginia, à objetificação e as violências contra a mulher e à falta de respeito às diferentes formas de expressão de gênero que reivindicam igualdade de status social.
Estamos diante de uma nova mentalidade e prática social que se conflita com a leitura conservadora que pensa o mundo como cisgênero e as demais expressões de identidade sexual e de gênero como anormais ou patológicas.
A visibilidade do crime de estupro contra mulheres se tornou possível a partir de uma reorganização institucional e legal. Do ponto de vista normativo, nosso código penal indica que o estupro fere a dignidade sexual da pessoa, pois tal direito está associado ao princípio constitucional da dignidade humana. O estupro, no Brasil, é também considerado um crime hediondo. Na mesma direção, institucionalmente foram criadas delegacias da mulher, serviços de canais de denúncia de violência doméstica e redes de apoio e de albergamento para mulheres que sofrem violência doméstica ou sexual.
Outra conquista desse movimento foi a noção jurídica de feminicídio que deu visibilidade aos assassinatos cometidos por homens contra mulheres, lembrado que, antes disso, esses crimes eram ocultados nas estatísticas de homicídio. Todavia, as tentativas de dar “marcha à ré” na história não cessam. Nos últimos dias, a Câmara dos Deputados, a despeito do que pensa a população, entrou com o Projeto de Lei nº 1.904/2024, em caráter de urgência, que torna o aborto homicídio simples quando realizado acima de 22 semanas de gestação e aumenta de 10 para 20 anos a pena máxima para quem realizar o procedimento. Esse tema está na pauta da opinião pública no Brasil.
Após essa digressão, retomo a questão em outros termos: como se estrutura o ambiente de formação de atletas no futebol de homens que pode favorecer a socialização de comportamentos misóginos, de desrespeito ao “não” dado pelas mulheres e a emulação através do “corpo da mulher como campo de batalha”? Mapearei uma possibilidade de interpretação a partir de cinco eixos:
Eixo 1: O futebol de homens se estrutura num ambiente quase totalmente masculino. É como se fosse “área masculina reservada”, como descreve Eric Dunning . O futebol também pode ser lido como mimese da guerra (Elias; Dunning, 1992) ou como uma “guerra de infantaria”, como bem descreveu Arthur da Távola (1985) .
Com isso, o “ethos do guerreiro” está presente na gramática do futebol de tal forma que molda subjetividades e valores fortemente associados a um tipo de “masculinidade intensa” e guerreira. Por exemplo, os atletas, desde jovens, ouvem as prédicas nos centros de treinamento sobre eles deverem ser agressivos, ágeis, fortes, corajosos, disciplinados, competitivos, resilientes, resistentes e inteligentes nas tomadas de decisão. Tanto na guerra quanto no futebol, alguns comportamentos devem ser aprendidos, pois não se pode hesitar, ter dúvidas e demonstrar medo diante dos adversários ou inimigos. Num estudo que realizamos, sempre lembro de um senhor que formava atletas afirmar o seguinte: “aqui não se forma só atletas, mas homens” .
A noção de homem aqui se refere a um tipo de masculinidade associada ao “modelo do macho destemido”, disciplinado e corajoso. O “outro” desse tipo de masculinidade intensa é a mulher ou as pessoas rotuladas como “não-homens”.
Eixo 2: Quem são os jovens que se aventuram na carreira de atletas de futebol? São adolescentes em pleno desenvolvimento físico e hormonal, oriundos, em geral, das camadas populares, que vivem boa parte desse período, até o início da vida adulta, em regime de albergamento ou com suas agendas totalmente absorvidas pelo esporte.
A conciliação com a educação básica, por exemplo, é secundarizada pelos atletas e suas famílias, como apontam nossos estudos . Nos trabalhos de campo que acompanhamos, esses jovens recebem, mesmo ainda quando são apenas potenciais, mimos e concessões que outros jovens da mesma idade não experimentam. Possuem dinheiro, celulares de última geração e roupas de marca, que provavelmente não tinham antes de adentrarem na carreira. São tratados pelo clube, pelos empresários e pelas famílias como “vacas premiadas”.
Com isso, a estrada para formação de uma personalidade narcísica ou infantil está asfaltada, apesar da narrativa de humildade que quase todos apresentam quando falam em público. Se, por um lado, o discurso de humildade é o socialmente esperado nesse espaço social, por outro, a arrogância salta aos olhos quando fazem “gol” e seguram o escudo do clube na camisa, batem no peito e parecem expressar com seus gestos: “eu sou o cara!”; depois apontam com os indicadores para o céu agradecendo aos seus deuses.
Eixo 3: Num ambiente dominado majoritariamente por homens, alguns assuntos são centrais: futebol, mulheres e consumo, não necessariamente nessa ordem. Esses jovens vivem um quase regime de “colégio interno” com pouco tempo para uma vida social normal. Nesse ambiente “testosteronizado”, há um forte controle da masculinidade pelos pares e um tipo de imposição de demonstração constante de heterossexualidade.
A virilidade e habilidade com as mulheres se expressa pela capacidade de “pegar mulher” com a demonstração permanentemente, para si e para os outros, que são “homens”. Não é à toa que muitos desses atletas, quando concretizam o primeiro contrato, expõem um belo carrão e uma mulher, como marcas de sucesso e, por extensão, de virilidade.
Música, carteado, mulheres, experiências sexuais e crenças religiosas são motivos de conversação e “zoação” no ambiente desses jovens. Esse tipo de clima e conversação não exclui os vínculos afetivos, religiosos e sociais que os atletas possam experimentar, mas, como já dito, eles devem afirmar o tempo inteiro suas masculinidades.
Eixo 4: Constantes viagens e pouco tempo para vida social transformam os jovens atletas e mesmo os profissionais em “turistas no mundo”. Quero argumentar que essas experiências de viagens, troca de hotéis e a vida em bando de homens estimulam aquilo que podemos nomear de “comportamento de turista”.
O “comportamento de turista” cria um clima de desinibição, suspensão do superego e uma conformação das atitudes e ações ritualísticas em acordo com as demandas grupais. A desindividualização sugere que em grupos, especialmente em situações em que a identidade individual é suprimida, as pessoas podem agir de maneiras menos restritas pelos padrões pessoais de comportamento que possuem em suas vidas no cotidiano.
Eixo 5: O sucesso financeiro, a transformação de garotos pobres em celebridades, não deve ser fácil, e isso não se limita ao campo esportivo. O sucesso meteórico e os ganhos financeiros mexem com a psiquê de qualquer um. Não é incomum que astros do cinema, da música e do esporte percam o “princípio de realidade” e passem a ter as exigências mais esdrúxulas nos seus cotidianos privados e profissionais.
Assim, parte dos atletas de futebol de sucesso também vivem o deslumbramento natural de qualquer astro. Uma das colunas de fofoca traz o seguinte: “Gabigol, do Flamengo, curte festa com oitenta mulheres, diz colunista”
Esses eixos acima nos ajudam a pensar como a socialização de jovens no futebol de alto rendimento pode ser um incremento na afirmação de um tipo de ethos masculino que nomeei de “intenso”. Ethos que fornece lentes e moralidades para tratar as mulheres como objetos de conquista e exposição, indicador de virilidade e tema de resenhas íntimas no ambiente de camaradagem que se mistura com “boleiragem” .
Todavia, a socialização nesse tipo de ambiente não cria estupradores potenciais e também não justifica os casos antes descritos. Pois, antes de tudo, tais casos são crimes. Por outro lado, devemos observar que a maioria dos atletas, mesmo socializados nesse ambiente de “masculinidade intensa”, não cometem esse tipo de violência sexual em relação às mulheres.
Os casos de estupro cometidos por Daniel Alves e por Robinho, e o de Cuca que foi ulteriormente absolvido quase trinta anos após a denúncia do crime, apresentam uma estrutura comum.
Todos estavam no exterior acompanhados de seus “parças”, “turistando” no tempo livre em bando, com dinheiro no bolso, com o prestígio de astros e com consumo de bebidas alcoólicas em algum ambiente festivo.
Esses “machos latinos” em bando se sentiram liberados para possuírem e violarem os corpos de mulheres, a despeito do consentimento delas.
Isso fica demonstrado, por exemplo, no caso de Robinho e seus comparsas, pois, após cometerem tal crime, ainda gravaram um vídeo rindo e comentando o ocorrido com o prazer de quem conquistou um “troféu” ou acumulou mais uma história torpe para suas resenhas íntimas.
Penso que o futebol de homens, enquanto mantiver essa estrutura pedagógica de “masculinidade intensa”, estará contribuindo para formar homens com uma visão arcaica e violenta de mundo que hierarquiza homens, mulheres e pessoas não-cis.
Esse ambiente dominado por homens, com formação numa espécie de instituição total, acaba por transformar o “corpo da mulher” em mais um campo de batalha para além das quatro linhas.
O remédio para esse mal parece justamente ter cada vez mais mulheres e outras pessoas não-cis atuando nesse esporte, nas funções de árbitras, treinadoras, auxiliares técnicas, jornalistas, médicas, massagistas, presidentas e gestoras de clubes e de federações, e em outras funções que a atividade absorve.
Penso que só assim poderemos criar um ambiente civilizado que atenda às necessidades democráticas e humanizadoras de nosso tempo.
Antonio Jorge Gonçalves Soares é professor visitante titular na UFRN, professor titular na UFRJ, bolsista de produtividade do CNPq, cientista do estado na FAPERJ, e coordenador da linha de pesquisa “Clubes, formação, carreira e migração de futebolistas” no INCT Futebol.
• Texto originalmente publicado no INCT do Futebol, no blog Bate Pronto: https://www.inctfutebol.com.br/batepronto
i Uso essa noção de “masculinidade intensa” para reforçar a centralidade e o controle social do “fazer-se homem” nesse espaço de socialização do futebol de homens.
ii Ver: https://mulhersegura.org/preciso-de-ajuda/categoria/violencia-contra-a-mulher-canal-de-denuncia?tipo=denuncia.
iii No sentido do sentimento que leva o indivíduo a tentar igualar-se a ou superar outrem na afirmação de sua identidade.
iv Dunning, Eric. O desporto como uma área masculina reservada: notas sobre os fundamentos sociais da identidade masculina e as suas transformações. In: Elias, Norbert; Dunning, Eric. A busca da excitação. Lisboa: DIFEL, 1992. p. 389-417.
v Távola, Arthur. Comunicação é mito: televisão em leitura crítica. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1985.
vi Souza, Camilo Araújo Máximo de; Vaz, Alexandre Fernandez; Bartholo, Tiago Lisboa; Soares, Antonio Jorge Goncalves. Difícil reconversão: futebol, projeto e destino em meninos brasileiros. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, v. 14, p. 85-112, 2008.
vii Correia, Carlus Augustus Jourand; Soares, David Gonçalves; Soares, Antonio Jorge Gonçalves. Estratégias e visões familiares na escolarização de jovens atletas. Educação e Realidade, v. 47, 2022. Rocha, Hugo Paula Almeida da; Melo, Leonardo Bernardes Silva de; Costa, Miguel Ataíde Pinto da; Soares, Antonio Jorge Gonçalves. Educação e esporte: analisando o tempo escolar do estudante-atleta de futebol. Educação em Revista, v. 37, 2021.
viii Ver: https://www.itatiaia.com.br/esportes/famosos-do-esporte/2024/06/06/gabigol-do-flamengo-curte-festa-com-oitenta-mulheres-diz-colunista.
ix Conversas próprias do universo de jovens jogadores de futebol com seus códigos restritos.