Do site da editora Alameda
Bernardo Kucinski, desde a publicação de seu romance, hoje já um clássico, K. – Relato de uma Busca, em 2011, tem lançado a cada par de anos uma nova produção literária. Seus livros orbitam em torno do “buraco negro” da memória da ditadura civil-militar de 1964-1985. Trata-se, portanto de um projeto literário sólido que se volta contra as políticas de esquecimento e de memoricídio tão fecundas neste país.
O congresso dos desaparecidos, que agora vem à luz, é uma obra desconcertante em muitos sentidos. Primeiro, por ter como personagens exclusivamente vítimas do desaparecimento como prática de terrorismo de Estado. Essa prática, amplamente utilizada nas ditaduras latino-americanas do século XX, no entanto, é apresentada por Kucinski no contexto da Colonialidade: desde que o Brasil foi criado praticou-se e se pratica o desaparecimento dos considerados indesejados pelos donos do poder.
Assim, ao lado dos desaparecidos da ditadura que organizam um congresso e, depois, uma tomada de Brasília (em um contramodelo revolucionário dos atos fascistas de 8/1/2023), encontramos também Zumbi, Antônio Conselheiro, Amarildo, combatentes da Cabanagem, da Guerra do Contestado, das ligas camponesas, de Canudos, indígenas, vítimas espectrais da violência e do racismo estruturais.
Kucinski em seu romance-manifesto repagina a história do país do ponto de vista das continuidades de práticas de dominação e de necropolítica. Nascido como fruto e resistência ao “surto fascista” que vivemos recentemente, no livro fica claro que nossa tarefa agora é organizar uma memória resistente para se combater os fascismos de hoje e estruturar uma sociedade na qual os fascistas não tenham mais vez.
De quebra, o romance, decerto inspirado no Pedro Páramo, de Juan Rulfo, e em outros diálogos de espectros e mortos, apresenta uma autorreflexão crítica sobre as práticas de resistência e revolucionárias das esquerdas durante os anos de chumbo.
Como sempre em suas obras, com ironia, personagens históricos e criados se misturam para permitir imaginarmos – criar uma imagem – da ditadura. Como o período neoditatorial de 2016- 2022 deixou claro com sua glamorização da ditadura, a memória desse período e a memória da barbárie institucional no Brasil devem constituir espinhas dorsais da resistência contra os fascismos que sempre galopam no dorso pútrido do negacionismo.
Nesse sentido, a prática do desaparecimento deve ser vista com o epítome do fascismo latino-americano, seu cerne.
A “fenomenologia do desaparecido político”, traçada por Kucinski aqui, não deixa dúvidas quanto a isso.
Márcio Seligmann-Silva
B. Kucinski é a assinatura literária do jornalista e professor aposentado da ECA-USP Bernardo Kucinski. Em 2011, ele lançou K. Relato de uma busca, traduzido para várias línguas e finalista de prêmios São Paulo de Literatura e Portugal Telecom. Recebeu dois prêmios da Biblioteca Nacional, por Você vai voltar pra mim (2014) e Júlia – nos campos conflagrados do Senhor (Alameda, 2020). Pela Alameda, publicou também A nova ordem (2019), A cicatriz e outras histórias (2021) e O colapso da Nova Ordem (2022).