POLÍTICA INTERNACIONAL
Por Miriam Waidenfeld Chaves
Para começar: a) a entrevista de Madeleine Albright, Secretária de Estado do governo Clinton, concedida à CBS, em 2008, para a jornalista Leslie Stah: ao ser indagada sobre se valeu a pena impor as sanções econômicas ao Iraque, uma vez que levaram à morte meio milhão de crianças iraquianas com menos de cinco anos, respondeu com um “valeu”[ii]; b) a invasão do Iraque pelos EUA, sem a permissão do Conselho de Segurança da ONU, em 2003
Incrível como esse conflito Rússia/Ucrânia tem gerado polêmica. A própria esquerda, muitas vezes, tem preferido se abster sobre essa questão.
Ao contrário, distanciando-me de minha mineirice, cuja tradição é manter-se em cima do muro, resolvi aqui me pronunciar.
Para começar, gostaria de esclarecer que meus argumentos não se encontram fundamentados no Direito Internacional. Os dois episódios acima mencionados já de antemão provam a fragilidade dessa base de sustentação.
Apóio-me tão somente na Geopolítica. Na crença de que toda e qualquer guerra deve ser discutida segundo as suas causas e não a sua essência. Ideias abstratas não ajudam a compreender as razões da guerra da vez. E, ainda, com base na premissa de que desde que o mundo é mundo conflitos e guerras existem, creio que a guerra seja a continuidade da política por outros meios.
Ancorada nesse tipo de “real politik”, como dizem por aí, o falso moralismo, ideologias ou conceitos abstratos não compõem o pano de fundo dessa argumentação.
Vamos lá, então.
Grande parte dos defensores de Volodymyr Zelensky acredita que todo país tem o direito de escolher o seu destino. Consequentemente, a Ucrânia deveria fazer parte da OTAN, caso assim o desejasse. Sustentam esse argumento no direito de autodeterminação dos povos.
Entretanto, realisticamente, se vivemos em um mundo atravessado por relações de poder, poderíamos já ter concluído que o livre arbítrio não existe mais. Logo, uma possível paz internacional na atualidade será apenas obtida se houver entre as nações certo equilíbrio de poder.
Quando esse equilíbrio é rompido, é porque a negociação esgotou-se. E a política, infelizmente, não conseguiu resolver o problema, restando, então, a guerra como opção.
Podemos adensar essa reflexão, caso acrescentemos à ideia do direito de autodeterminação, outro princípio, mais realista: o direito de autodefesa. Enfim, se não há dúvidas de que o mundo se encontra atravessado por relações de poder e que, nos últimos anos, o equilíbrio desse poder tem se tornado cada vez mais frágil, é óbvio que esse cabo de guerra entre as nações acabe produzindo um clima de ameaça cada vez maior entre elas.
Nesse caso, a nação ameaçada por outra estaria apenas se autoprotegendo ao iniciar um conflito. Estaria, sem falso moralismo, defendendo-se do inimigo e, realisticamente, exercendo o seu direito de autodefesa.
Esse foi o caso: a Rússia, ao ter a maioria de seus países fronteiriços na OTAN, sentiu-se atacada com a possibilidade da Ucrânia tornar-se membro desse organismo político-militar internacional, comandado pelos EUA.
Conclusão: a posição singular da Ucrânia no mapa mundial determina que esse país, geopoliticamente falando, se mantenha neutro. Distante de posições político- militares que possam colocar em risco o já frágil equilíbrio de poder entre as nações. Ou seja, impõe-se que ela não faça parte da OTAN. E que, portanto, o seu direito de autodeterminação esteja, no momento, submetido a algo mais relevante: a recomposição do equilíbrio de poder mundial, elemento único e capaz de colocar fim à instabilidade geopolítica deflagrada na região.
Outro aspecto a ser considerado se refere ao aumento da russofobia na Ucrânia, um caldeirão étnico não apenas composto pelo povo ucraniano.
A partir de 2014, a vitória de governos pró-ocidentais naquele país intensificou o nível dessas ameaças. Primeiro, porque novos decretos propuseram o banimento da língua russa em regiões ucranianas majoritariamente habitadas por russos. Segundo, porque os setores da extrema-direita tornaram-se um braço legal no interior do Aparelho de Estado ucraniano.
Tanto o Praviy Sektor, movimento de extrema-direita neofacista, com assento no parlamento ucraniano, quanto o Batalhão Azov, uma unidade da Guarda Nacional da Ucrânia, inspirado em Stepan Bandera (1909/ 1959), soldado ucraniano nazista que lutou ao lado de Hitler na Segunda Guerra Mundial, passaram, sem pudor, sob a aquiescência de Kiev, a caçar os russos, moradores da Ucrânia.
Diante desse aumento do clima de perseguição nas cidades de Donetsk e Luhansk (região de Donbass), cuja população é de maioria russa, Putin, no limite de sua paciência frente à ineficiência dos organismos internacionais em brecar essa perseguição, resolveu pôr fim a essas ameaças enviando suas tropas àquela região. E aí, tudo começou.
O que isso significou?
Geopoliticamente falando, os EUA, o mais importante membro da OTAN e o mais poderoso país do planeta há décadas, sentiram-se igualmente ultrajados e ameaçados, na medida em que até aquele momento, nenhuma nação havia ousado barrar um projeto político militar de seu interesse.
Prevendo o fim de sua soberania mundial, sob o manto da liberdade e da democracia, palavras vazias de significado se utilizadas fora de algum contexto, resolveram contra-atacar: “socorrer” o “paladino da liberdade”, o senhor Zelensky, um comediante judeu, alinhado aos movimentos neofacistas de seu país que, em 2019, foi alçado à presidente da Ucrânia.
Enfim, através desse ato, os EUA: a) demonstraram que não vão aceitar a queda de seu império sem luta; b) iniciaram uma nova guerra, pois precisam disso para continuar produzindo armamentos a rodo; c) desviaram a atenção dos americanos, chocados com o fracasso da retirada de suas tropas do Afeganistão, durante os meses de fevereiro e agosto de 2021; d) enxergaram esse momento como ideal para iniciar uma campanha de desrussificação no planeta, já que a própria Rússia tornou-se uma potencia militar, capaz de desafiar a arrogância e a ganância americanas.
O desenrolar dos acontecimentos, portanto, tem dado mostras que o cabo de guerra entre Rússia e EUA é briga de cachorro grande: a Rússia sobreviveu às sanções, estreitou relações econômicas com a China e, principalmente, para terror dos atlantistas (12% do território do planeta), o sul global (88% do território do planeta), a partir desse conflito, entendeu que para sua própria sobrevivência precisa ampliar as suas relações econômicas e militares.
O tiro, parece, saiu pela culatra, e o Ocidente está testemunhando o nascimento de uma nova ordem mundial, onde ele, não mais ditará, sozinho, os termos a serem seguidos pelas nações desse imenso planeta Terra.
Em Davos, em maio de 2022, quando Henry Kissinger, baluarte da política externa norte-americana, afirmou que “a Ucrânia deve ceder parte de seu território à Rússia, para obtermos a paz”, parece que compreendeu o que está em jogo. Só não entende quem não quer!
E, mais, quando em junho deste ano, durante o 25º Fórum Econômico Internacional de São Petersburgo, Allexey Miller, chefe da Gazprom, poderosa empresa de energia russa, decretou “nosso produto, nossas regras” e Putin, no dia seguinte, bradou “a ordem mundial unipolar se foi para sempre”, as bases da economia mundial tremeram.
Como diz a música “nada será como antes, amanhã”.
Essas são as reais causas da guerra. O que está em disputa não são princípios como liberdade ou democracia. Mas, o fato de que a balança de poder alterou-se. E aqueles que sempre estiveram no topo, estão tendo mais trabalho para manter essa posição. A disputa acirrou-se: a Rússia, com seu arsenal militar, e a China, com o seu poderio econômico, vieram para ficar. E esse fato é novo.
Enfim, se através da fala de Madeleine Albright, uma heroína para os americanos, nos damos conta de que ela não passa de uma criminosa de guerra, igualmente compreendemos que os EUA não estão preocupados com o fato de as pessoas morrerem ou não nas guerras. O que realmente importa é se eles vão ou não continuar dando as cartas nesse imenso tabuleiro de xadrez da economia mundial.
PS: É muito difícil olharmos para essa senhora branca, loira e muito bem vestida, que poderia ser nossa mãe ou mesmo avó, e a imaginarmos como uma assassina. Entretanto, se o seu “valeu” proferido na entrevista fosse dito por outro alguém, um pouco diferente (negro, indígena, favelado, chinês ou russo), com certeza, iríamos chamá-lo de assassino. Isso foi o que Hollywood nos ensinou e não percebemos. Nos filmes de cowboy, Rambo e 007, os indígenas, russos e chineses sempre foram os vilões da história. Seres sem alma ou religião.
E você acredita nisso? Caso sua resposta seja negativa, então está na hora de você questionar a versão que te contam sobre essa contenda.
Notas da Autora
[i] Fontes: a mídia alternativa – TV 247, Opera Mundi e Alô, Helô
[ii] Disponível no Youtube
Miriam W. Chaves é professora da UFRJ.
Resposta de 0
Enviei pra amiga que escreveu a
crônica.
👇🏻
Míriam, tua crônica volta os meus olhos para as tensões entre os cachorros-grandes do poder.
No entanto, a violência mesquinha da guerra chafurda corpos de pessoas anônimas da terra onde nasceu a nossa Macabéia ucraniana.
Comparo o drama dessas pessoas com o diálogo contido na película de *Hiroshima Mon Amour* quando plasma os infernos vividos em Nevers e Hiroshima a partir de seus personagens.
Ele, cidadão de Hiroshima: “Você não viu _nada_ de Hiroshima, nada.”
Ela, cidadã francesa de Nevers: “Eu vi _tudo. Tudo.”_
Comprei na Travessa, o roteiro escrito pela Marguerite Duras.
Tinha visto o filme nos anos 1970, no Rio, sob os escombros de Hiroshima, Nevers e Palmeira dos Índios.
Eu, a comparar e a mitigar as nossas grandes e pequenas tragédias bélicas tecidas nos centros de decisões do poder, em diferentes partes do 🌎.
Enviei pra amiga que escreveu a
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Míriam, tua crônica volta os meus olhos para as tensões entre os cachorros-grandes do poder.
No entanto, a violência mesquinha da guerra chafurda corpos de pessoas anônimas da terra onde nasceu a nossa Macabéia ucraniana.
Comparo o drama dessas pessoas com o diálogo contido na película de *Hiroshima Mon Amour* quando plasma os infernos vividos em Nevers e Hiroshima a partir de seus personagens.
Ele, cidadão de Hiroshima: “Você não viu _nada_ de Hiroshima, nada.”
Ela, cidadã francesa de Nevers: “Eu vi _tudo. Tudo.”_
Comprei na Travessa, o roteiro escrito pela Marguerite Duras.
Tinha visto o filme nos anos 1970, no Rio, sob os escombros de Hiroshima, Nevers e Palmeira dos Índios.
Eu, a comparar e a mitigar as nossas grandes e pequenas tragédias bélicas tecidas nos centros de decisões do poder, em diferentes partes do 🌎.