No alto do pé de pequi

Por Miriam Waidenfeld Chaves

A  Avenida Presidente Vargas, no cento do Rio de Janeiro, fervilha de calor, monóxido de carbono e lixo. Ali, na altura da Rio Branco, a Igreja da Candelária, com sua imponência mal ajambrada, apenas divide a via direita da esquerda daquela praça tão cheia de história.

O Cristo, no alto de sua abóboda, diariamente testemunha um cenário corriqueiro para seus olhos:  moradores de rua maltrapilhos estendem as mãos, gritam, resmungam numa língua desconhecida. Surrupiam o que podem.

Toninho, nem muito velho, nem muito novo, raquítico, com os olhinhos sempre na dianteira, à espreita de algum inesperado, não descansa. Não tem paz. É pura  gozação para aqueles outros desvalidos que por ali circulam.  Sua deformidade no pé esquerdo faz com que o chamem de “O Aleijadinho”.

Hoje em dia, nem se importa mais com essas brincadeiras, pois tem coisa mais urgente para fazer: buscar alguma comida para si e Salomão, um vira lata, miudinho como o dono, com uma cara de “quero mais” carinho, comida e quem sabe, até um banho.

Há dois anos não se desgrudam. Às vezes, se divertem: ganham um cheese burguer, mergulham em algum chafariz ou, ainda, encontram um tênis sem cadarço e até mesmo uma galinha assada desossada. Um guarda-chuva novinho em folha, um cobertor gigante e uma roupinha para Salomão viraram seus melhores achados.

Faz tempo, Toninho viu num centro cultural ali da região umas fotografias sobre as suas ruas! Viajou com os olhos pela Rua dos Andradas, Marechal Floriano, da Quitanda, Buenos Aires e Miguel Couto. Imaginou a si próprio dentro daquele cenário em preto e branco, rezando nos bancos da Candelária, caminhando de bengala na Av. Central e lanchando na Cavé.

Ao se deparar com a rua, depois daquela viagem, olhou a sua volta e vomitou. Lembrou-se da roça de sua infância, do pé de pequi no fundo do quintal e dos dias em que, do alto de seus galhos, olhava para o céu, sempre azul e seco, e viajava.

Naquele mesmo instante, deu de cara com Salomão sorrindo para ele. Virou sua família, aquela da cidade grande e da rua.

A partir daí, os dois zanzam sem parar de um lado para o outro nesse pedaço de terra que para eles não pertence a ninguém. Salomão, sentado como um paxá na carroça de seu companheiro, parece um farol. E, quando late desconfiado para alguém, Toninho, na mesma hora, monta guarda.

Com a vida longe do pé de pequi, agora ela é assim, na rua, sob as marquises, com seus papelões e pedaços de pano. Distante dos outros, num bequinho, lá perto da Visconde de Inhaúma, faz seu pouso, junto com seu parceiro. Ali, em noites de calmaria, até conseguem tirar um bom cochilo.

Quando chove é uma desgraça. Mas, nessas horas, Toninho tira de um buraco um cobertor, um casacão e um plástico gigante. Agarra-se a Salomão e fecham os olhos.

Eventualmente, Salete se junta à dupla. Depois some de novo. Quando volta, volta combalida. Agarra-se a Salomão e dorme um sono tranquilo. Na manhã seguinte, corre de novo para as bandas da Central do Brasil.

Às vezes, quando o estômago de Toninho ronca de fome, ele até fica um pouco tonto. Imagina-se no alto do pé de pequi, de onde admira a roça de milho, a chaminé trabalhando e Lourinha ciscando no terreiro. Sentindo o cheiro do feijão ralinho da mãe, geralmente adormece. Acorda com Salomão lambendo sua cara.

Enfim, têm a chuva, as facadas, a disputa pelo papelão, as brigas, o cachimbo, os roubos e até o  desprezo das pessoas. Mas, para ele, nada é pior do que a fome. E para saciá-la vale tudo ou quase tudo. Pede, implora, mergulha as mãos nas lixeiras, rouba.

Entretanto, faz três meses que tirou a sorte grande: de segunda à sexta bate ponto às dezessete horas nos fundos do restaurante do seu Cícero. Ali, ganha comida suficiente para ele e Salomão. Lambem os beiços de felicidade, quando têm sobremesa.

Toninho descobriu esse santo milagreiro por acaso, num dia de chuva, quando voltava para seu quadrilátero na Rua Visconde de Inhaúma. Derrotado, molhado e com Salomão tiritando de frio, passou por uma ruela de onde do alto de uma janela saia um cheiro de feijão temperadinho. O feijão de sua mãe.

Parou, enxergou uma fila defronte à janela, se alinhou a ela e foi para seu pouso com um banquete nas mãos. Naquela noite, Toninho e Salomão comeram carne assada, farofa, arroz e feijão. Esqueceram do frio e dormiram. Nem tiveram tempo para sonhar.

Hoje, Toninho e Salomão esperam Salete para abrirem o farnel. Pela manhã, ela disse que viria. Aliás, tem voltado sempre. É a comida. O jeito meigo de Toninho. É o calorzinho de Salomão. Sente-se segura  com esses dois fiapos de gente.

Os três juntos até parecem felizes, mas, desgraçadamente, Toninho não sabe que aquele lugar na fila do restaurante pertencia a Almirante que, de pavio curto, foi logo discutir com seu Cícero, que não quis mais vê-lo pela frente.

Salete chega e os três se esbaldam com a refeição. E, enquanto Salomão se espreguiça com o bucho cheio, Toninho e Salete inventam sonhos. Ele diz para ela que estão no alto de um pé de pequi e que de lá enxergam uma roça de feijão verdinha, uma chaminé trabalhando e um galinheiro.

Salete, por sua vez, conta que estão na praia junto com Salomão, que corre com um graveto na boca. Mergulham na água quentinha sob um sol amarelo e bóiam com olhos abertos admirando o céu azul.

Final 1

Depois daquela noite dos sonhos, Almirante reapareceu na redondeza.

Já na ativa, após um tempo sumido devido às três facadas que desferira contra Canhoto numa briga por território, espreita seu usurpador de longe. Não se conforma em ver um aleijado comendo a  sua comida, enquanto ele não come há dois dias.

Com o estômago comandando os seus passos, analisa meticulosamente as condições do bote. Não quer alarido. Não quer cachorro latindo, nem cracuda fazendo escândalo. Tem que ser preciso.

Apalpa sua fiel companheira Zizinha na cinta e mantém os olhos esbugalhados grudados naquele convescote. Espera.

Finalmente, às cinco da manhã, com o primeiro raio de sol sobre Zizinha que reluz em prata, avança sobre Toninho. Só ele lhe interessa.

Curva-se devagar e desfere três facadas sobre o estômago de seu inimigo. Na terceira, Toninho abre os olhos e se enxerga no alto do pé de pequi. Depois, fecha os olhos.

Final 2

Depois daquela noite dos sonhos, Salete desapareceu.

E, Toninho, apesar de não gostar de se aventurar por aquelas bandas da Central do Brasil, resolve, mesmo assim, ir até lá procurá-la.

De longe, a enxerga magra e desnorteada. De perto, vislumbra a sua tristeza. Fica ali sabendo da existência de Almirante. Descobre, inclusive, que aquele seu lugar na fila do restaurante pertencera a ele que, doente da cabeça, briga com todo mundo na rua.

Salete, ainda, lhe conta que Almirante é seu pai e que ele, em crise, passara um tempo internado em um hospital. Agora, com ele na rua, não sai de perto dele. Tem medo de que entre em uma nova confusão.

Toninho volta para a Rua Visconde de Inhaúma de cabeça baixa.

No dia seguinte, apresenta Salete para seu Cícero. Diz que ela a partir daquele dia ficará na fila em seu lugar.

Ele? Decidira voltar para o alto de seu pé de pequi, lá na roça da mãe. Cansou-se da cidade grande. Muita tristeza.

Está ansioso para apresentar o pé de pequi para Salomão.

 

Miriam W. Chaves é contista e professora da UFRJ.

 

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