Não sou neguinha!

NÃO SOU NEGUINHA!

Tinha seis aninhos. Adentrou na sala do primo num 24 de dezembro. Viu os priminhos, os tios, a garotada em festa. Olhou para os quatro cantos do ambiente e lascou: “… Quem é a mãe dessa casa?”

Uma casa de queridos primos irmãos, que abraçou carinhosamente anos e anos ininterruptos meus filhos para natais maravilhosos. Até hoje são lembradas as noites do natal na Tia Olívia, a mãe que não se encontrava no recinto principal, mas capitaneava a cozinha como chef inigualável com quitutes do salgado ao doce de fazer babar o privilegiado comensal.

Bequinha, minha eterna caçulinha, meu raio de sol, era chamada pelo primo-tio de resquível, a mulher inesquebeca, numa alusão ao filme “Rebecca”, A Mulher Inesquecível, para nós — de Hitchcock, com Joan Fontaine e L. Olivier. À época pouco entendia… Durante os 4 anos seguintes vivia a explicar para Rebecca, por que resquível…

Havia outros ingredientes que nossa família comportava na dimensão do politicamente incorreto. As trocas racistas, parecidas inofensivas, eram presentes e perenes…

Nascido entre louros, sempre fui o negrinho. A família, como um todo, chamou-me de negrinho. Negrinho daqui, negrinho dali… E risos e mais risos porque o negrinho era diferente… Lembro-me que meu pai desaconselhava e nunca se dirigiu a mim, a não ser pelo meu nome.

Muitas vezes, o tom chistoso vinha como repreensão: “… Tinha que ser ele, coisa do negrinho. Tão vendo?”. No mais, ainda hoje, em encontros com o primos da mesma geração, as boas vindas: “… Chegou o negrinho!”.

O negrinho carinhoso, o criado mudo, a nega boa, não fez na entrada mas fez na saída, eram comuns em muitos assuntos de muitas famílias próximas. Era algo convencional.

O minha nega, ôôô nego, tudo bem?, sempre deixava um ar carinhoso no ambiente, sob aura afetiva. A não apreensão do componente racista só é possível àqueles não afetos ao racismo.

Com o avanço das políticas inclusivas e das prerrogativas politicamente mais corretas, foi o tempo determinando nossa configuração danosa para com as figuras estruturadas nas linguagens mais preconceituosas sob o manto inconsciente da discriminação.

Estamos num tempo de irupções, de retorno dos preconceitos também reprimidos sob o falso manto da cordialidade que sempre escondeu belicosidades determinando quadrados definidos.

Não é difícil observarmos as estupidificações na imprensa casa-grande, que segue sem muita clareza quando os temas suscitados requeiram firmeza. Não há! Não há nem firmeza nem clareza aos deboches entrelinhas…

Mas a minha mais loirinha um dia peitou o primo! Carregada a resposta, algo sinalizava o ranço epidermicamente instalado nas andanças que toda a família suportava.

— Vem cá, minha nega!
— Nunvô!!!
— Ôôô minha neguinha! Vem cuntio!
— Nunvô!!!
— Mas por quê minha nega?
— Não sou neguinha!

Os risos eram muitos! Amarelecidos alguns, denotavam certa complacência, já crônica e sem saída, sem a possibilidade de uma castração que nunca chegou nem chegará…

Talvez uma hipótese que se imponha para entendermos como custamos a deixar certas diferenças sob discriminação e preconceito operantes, esteja na transmissibilidade da moral sob imposição maior ou menor (até inexistente…) de uma estrutura que castre, que impeça a ascese ao desejo indiscriminado.

Marca-se uma diferença pela presença no cotidiano consciente de algo não apreensível. Um resgate impossibilitado quando não se lida com repressões. Segue-se num vai da valsa sem limites definidos.

Chegaria a aproximar essas vivências a uma conotação sublimada, atividade sem qualquer relação aparente (aparente!) com a sexualidade, mas que encontraria o seu elemento propulsor na força das energias e dos drives com diretiva sexual, pelo menos nesses impulsos de satisfação garantida…

Mazelas que não irão se dissipar. O branco continuará a achar o “é isso mesmo”, “o preto é diferente” (nunca o branco; talvez em Botsuana), “tudo é diferente, até o cheiro…”, “nunca vai mudar”.

Aquela loirinha não aprendeu em casa nada que a fizesse recusar uma cor. Na própria conduta amorosa é que se nega o óbvio. Aquele tio recebera de seus antepassados uma carga discriminadora acentuada na diferença, passada ao largo pela discriminação escamoteada no carinho e na prosa amena, quase singela…

Válida a empreitada carregada dos preconceitos escravocratas, dos bridões na escrita e voz de nossos antepassados donos e reféns de capitanias ainda preservadas, “via o que é visível, via o que não via; o que a poesia e a profecia não vêem mas vêem, vêem, vêem, vêem, vêem…”

Caetano carregara em tons do claro ao cinza e deste ao escuro: “… é o que parecia; que as coisas conversam coisas surpreendentes…”.

Verdade! “Fatalmente erram, acham solução e que o mesmo signo que eu tenho — ler e ser é apenas um possível ou impossível em mim em mim em mil em mil em mil…”.

Diria milhões e a pergunta viria. Ela vinha e veio “— eu sou neguinha, papai?”. A pergunta vinha sim… E como!

“Eu sou neguinha? Eu sou neguinha? Eu sou neguinha?”

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