Não é só na produção de vinho, estúpido!

Por Camilo Vannuchi na FSP 

Um retrogosto repulsivo. Inaceitável a notícia de que mais de duzentos trabalhadores empregados no descarregamento de uvas em vinícolas de Bento Gonçalves, na Serra Gaúcha, foram resgatados de alojamentos onde eram mantidos em condições de trabalho análogas à escravidão. Os detalhes são especialmente detestáveis. Conforme depoimento prestados por três trabalhadores que conseguiram fugir e denunciaram o crime à Polícia Rodoviária de Caxias do Sul (RS), os trabalhadores eram obrigados a levantar às 4h e só voltavam ao alojamento às 23h, precisavam comer alimentos estragados e o faziam com a mão, uma vez que não havia talheres, e eram submetidos a um regime de choques elétricos frequentes sempre que fizessem alguma reclamação. Sim, você leu direito: tortura na produção de vinhos.

O episódio choca por diversos motivos, entre eles o aparente anacronismo entre a escravização de trabalhadores e o pelourinho contemporâneo flagrado no Rio Grande do Sul. Também surpreende por ocorrer numa região linda e remediada, num dos três únicos Estados do país onde a insegurança alimentar grave e moderada (ainda) não atinge 10% da população, e justamente na cadeia produtiva de um alimento sofisticado, considerado de elite, com um ticket alto, cujas empresas poderiam perfeitamente arcar com salários decentes e condições adequadas de trabalho.

Mas o episódio choca, sobretudo, pela desfaçatez dos envolvidos e pela aparente ingenuidade do público. Através de sua assessoria de imprensa, a Aurora e a Salton, duas das empresas que utilizavam os serviços da empresa terceirizada recém autuada, buscaram se eximir de responsabilidade afirmando exatamente isto: que a empresa criminosa não é nenhuma delas, mas uma terceirizada, e que os trabalhadores não foram resgatados das vinícolas ou da lavoura, mas do alojamento dessa prestadora de serviço, e que era ali que as violações de direitos eram praticadas.

Ora, e quem deveria ser responsável por escolher corretamente as empresas terceirizadas que contrata? Quem deveria verificar as condições de trabalho impostas por essas empresas a seus funcionários e colaboradores? Indo um pouquinho mais longe: por que contratar uma empresa terceirizada? É o capitalismo, estúpido, diria o nobre e bem-alimentado leitor. E ainda teve associação dizendo que a culpa é dos programas de transferência de renda, que estariam na origem da profusão de desocupados e de tão grande escassez de mão de obra qualificada disponível. Vai entender.

Enquanto bebericamos nosso cabernet e navegamos nos portais de notícia, há trabalhadores submetidos a condições análogas à escravidão lotados na produção de vinho, de café, de suco de laranja, de açúcar, de carne bovina, de frango, de combustível, de camisetas de algodão. Há sempre um feitor com o caniço em riste e o cipó de aroeira pronto para estalar no lombo de quem trabalha. Porque, no mundo encantado de muitos investidores, a produção é feita por ativos, máquinas, e balanços, mas nunca por gente.

Desumaniza-se a agricultura para aumentar o faturamento e perpetrar um lucro que, muito provavelmente, baterá novos recordes neste ano. “O Agro é pop”, grita a propaganda evangelizadora no altar-televisão. Amém, repetem os fiéis.

O absoluto descaso pela humanidade de trabalhadoras e trabalhadores é irmão siamês da desumanidade que aflora da agricultura convencional que se alastra pelo país. Quem não é capaz de enxergar os efeitos letais dos agrotóxicos na saúde dos consumidores e dos agricultores que vivem em terras pulverizadas, quem não percebe a irreversibilidade da devastação perpetrada nas florestas por pastagens, rebanhos e campos de soja, quem não tem a inteligência de perceber que o avanço da monocultura dessas commodities tem expulsado para longe as lavouras de alimentos fundamentais como o arroz, o feijão, a mandioca, hortaliças e outros tubérculos, quem não tem a sensibilidade de entender que tudo isso colabora para perpetuar a insegurança alimentar e intensificar a violência da fome no Brasil, esses já foram há muito capturados pelas almas sebosas do agro, do deus-mercado, da desolação.

Camilo Vanucchi é jornalista, escritor e professor

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