Namorar um ‘cachorrinho matriculado’, jamais!

 

Por Sonia Castro Lopes

A memória sabe de mim mais que eu; e ela não perde o que merece ser salvo.

(Eduardo Galeano)

Sexta feira, 13, dia do azar. Há 53 anos, assim como hoje, o dia era quente e abafado na cidade do Rio de Janeiro. Chego da escola com uma amiguinha e encontro meu avô colado no rádio ouvindo com a maior atenção a notícia sobre o AI-5. Lacerdista fanático, ex-simpatizante dos ‘camisas verdes’ quando jovem, seu comentário não podia ser outro: “Olha aí, é preciso endurecer mesmo. E tudo por causa daquele deputado maluco que fez discurso ridicularizando os militares que puseram ordem na casa.” Do Lacerda não falava mais, desiludido ao vê-lo compor com Jango e JK a “frente ampla”. Tornara-se então um defensor da ‘revolução’ e apoiador da ARENA.

Eu mal entendia o que estava se passando, mas a referência ao discurso do deputado me interessou. Havia lido pouco tempo antes no jornal que meu avô assinava (acho que era O Jornal) um resumo da fala do deputado Márcio Moreira Alves solicitando às moças “aquelas que dançam com cadetes e namoram jovens oficiais” que boicotassem os militares. Na época, achei aquilo engraçado. Caloura no Instituto de Educação me acostumara a ver a dupla normalistas-cadetes como algo natural. A partir dali passei a ver os garotos do Colégio Militar com outros olhos e a dar razão aos meninos do Pedro II que os apelidavam de “cachorrinhos matriculados” numa alusão debochada à sigla C. M. Resolvi ali que seguiria os conselhos do deputado para desespero do meu avô. Nem namorava ainda, mas minha estreia jamais seria com um daqueles “cachorrinhos matriculados.”

Anos depois, preparando-me para o vestibular de História pude entender o AI5 como um golpe dentro do golpe, uma medida que não tinha prazo de vigência e estendeu-se por dez anos. Congresso fechado, interventores nos estados, suspensão de direitos políticos e do habeas corpus, demissão e/ou aposentadoria compulsória de servidores públicos. Vivi esse terror quando entrei na UFRJ ao saber que professores como Maria Yeda Linhares, Eulália Lahmeyer Lobo, Manoel Maurício de Albuquerque tinham sido afastados ou aposentados compulsoriamente. Sobrou para nós Eremildo, o idiota, com suas lições de história antiga e medieval. Tratei de me inserir entre os colegas mais progressistas e parti para pesquisar a história do Brasil recente. Era preciso conhecer as táticas e estratégias dos opressores para “combater o bom combate.”

A ditadura teve fim, o país se redemocratizou e resolvi cursar o mestrado em história política. Nunca poderia imaginar que um dia, no futuro, voltássemos a assistir cenas e ouvir os discursos que tanto repudiávamos, mas que hoje se impõem como assombrações que insistem em nos apavorar. Os milicos, cachorrinhos matriculados de outras épocas, estão ‘por cima da carne seca’, como diria minha avó. Se ontem o deputado convocava as moçoilas para boicotar os alunos das escolas militares, hoje a convocação é para as ‘senhoras’ virarem o rosto para esses coronéis e generais, jagunços do capitão reformado, que chafurdam no mar de lama em que se transformou o atual governo.

 

 

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  1. Excelente artigo, professora Sônia. A experiência da vida à serviço da história verdadeira e não a falsa narrativa ainda contada nas casernas. Ditadura nunca mais! Fora Bolsonaro e as viúvas do golpe civil-militar de 1964.

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