Por Ivan Seixas
Cabo Anselmo, aliás, José Anselmo dos Santos, marinheiro de primeira classe, morreu sem prestar contas à história dos crimes que cometeu. Foi uma mentira e um mentiroso até no fim de sua vida. Depois que ajudou a matar várias pessoas, inclusive sua companheira grávida, passou a viver com nome falso, sob a guarda de torturadores assassinos. E foi enterrado sob esse mesmo nome falso.
Conheci e estive com esse miserável em algumas ocasiões difíceis. Durante a luta clandestina, o Comandante Carlos Lamarca pediu pediu à minha Organização, o MRT – Movimento Revolucionário Tiradentes, para dar suporte para o Cabo, que acabara de chegar de Cuba, onde esteve exilado desde o golpe de 1964. A sua organização, a VPR – Vanguarda Popular Revolucionária, estava desestruturada no começo do ano de 1971 e não tinha como manter alguém tão procurado pela ditadura militar, como era o caso de Jonatans, como era conhecido Anselmo. Ele tinha a tarefa de construir uma casa, no município de Osasco, para ser um bom aparelho em condições de suportar exilados e banidos, que voltassem para a luta. O terreno tinha sido vendido por um cunhado de Pedro Lobo, querido comandante da VPR, ainda no exílio. Depois que mudou de lado, Anselmo ficou com a casa de Osasco ou a dividiu com a equipe do Fleury.
Eu fiz a segurança para companheiros, que foram encontrar com Jonatans/Anselmo para lhe passar dinheiro e informes/orientações de Lamarca. Em seu depoimento ao DOPS, quando foi preso, em 30 de maio, ele conta que havia segurança feita por “Roque e seu filho, um rapaz bem jovem”, do mesmo modo que conta em detalhes a viagem ao Rio de Janeiro, que meu pai dirigiu o carro para levá-lo para reuniões com Inês Etienne Romeu e Carlos Lamarca.
Outra ocasião tensa em que que encontrei esse traidor foi quando a TV Globo apresentou o programa Linha Direta sobre ele e realizou um debate comigo e o advogado dele, sobre a possibilidade de receber anistia e a aposentadoria junto Comissão de Anistia. Quando cheguei aos estúdios da Globo estavam lá o próprio Cabo, seu protetor e guarda-costas Carlinhos Metralha, e o advogado. Após o debate, na saída, Carlinhos Metralha me parou e me desafiou a conversar. Topei com a condição de que o Cabo participasse da conversa também e eles toparam. Meu amigo Marcelo Godoy, excelente repórter estava presente e testemunhou tudo.
O traidor se apresentava como sendo Fininho, torturador e membro do Esquadrão da Morte. Eu e Marcelo Godoy contestamos dizendo que Fininho já estava morto há alguns anos e não conseguiram contestar esse fato. Anselmo estava mudado um pouco, devido a uma operação plástica. Tinha o queixo e as maçãs do rosto com próteses, e com uma careca acentuada. Bem diferente da cabeleira que ostentou em sua entrevista ao Roda-Viva.
Agora, esse miserável traidor morreu e não prestou contas de seus crimes. Por sua ação, onze companheiras e companheiros foram assassinados sob torturas, e algumas dezenas de outras pessoas militantes foram presas, torturadas e passaram longos anos encarceradas.
Sou ateu e não tenho o consolo de pensar que arderá no inferno ou algo parecido, mas me sinto na obrigação de contar quem foi essa pessoa execrável, que viveu tempo demais e não prestou contas à história.
Ivan Akselrud de Seixas nasceu no dia 19 de novembro de 1954, em Porto Alegre. Aos 15 anos de idade, mudou-se com sua família para a capital paulista. De origem humilde, cresceu em meio à reivindicação da classe trabalhadora, transformando a militância política e a ideologia comunista em fatores intrínsecos à sua existência. Seu pai, o operário Joaquim Alencar de Seixas, foi militante e um dos dirigentes do Movimento Revolucionário Tiradentes (MRT). Aos 16 anos de idade, Ivan, que já prestava apoio às ações do MRT, foi preso ao lado de Joaquim, em 16 de abril de 1971.
Pai e filho foram encaminhados ao DOI-Codi/SP, onde foram torturados juntos. Nesta mesma ocasião também foram capturadas sua mãe e suas duas irmãs. Com toda a família presa no mesmo local, o momento da execução de Joaquim pode ser ouvida por seus familiares. Ao longo dos cinco anos em que esteve preso, Ivan passou por diversos aparatos prisionais. Além do DOI-Codi/SP, esteve no Deops/SP, Deops/RS, Presídio Tiradentes, Penitenciária do Estado, Presídio do Hipódromo e na Casa de Custódia e Tratamento de Taubaté. Por se tratar de um menor de idade, seu caso figurou em inúmeras denúncias no exterior que apontavam para as graves violações de direitos humanos e arbitrariedades jurídicas cometidas pela ditadura civil-militar brasileira. Atualmente, é membro do conselho consultivo do Núcleo de Preservação da Memória Política de São Paulo (NM).