Ari Cândido, o primeiro fotojornalista negro de guerra do Brasil
“A fragilidade gelatinosa do seu pré-roteiro acumula situações sempre previsíveis ou simplesmente gratuitas (…) os truques ginasianos e absurdos de sua sinopse, o equívoco básico de sua concepção, o vício colonizado e ubíquo azedando mais um vácuo absoluto no que deveria constituir seu núcleo. O plano estrutural do seu documentário é selvagemente reacionário (…) falta-lhe estrutura, ousadia, alegria, conhecimento e, curiosamente, espírito – tanto no sentido francês de sprit quanto no inglês de wit. O projeto a meu ver deveria ser prontamente esquecido. Devo confessar que estou esgotado de ter que justificar qualquer posição frente a qualquer minoria. O que se chama de “politicamente correto” é só outra forma de fascismo. E que, finalmente, a sentença seja dada em alta temperatura, passional, emocional e esotérica: Seu currículo me parece merecer nota 1.”
As duras palavras acima foram escritas no ano de 1998 por pareceristas do Programa de Integração Cinema e TV de uma famosa rede de TV pública brasileira e endereçadas ao projeto do filme de curta-metragem O Rito de Ismael Ivo. O então proponente do projeto era Ari Cândido Fernandes, veterano cineasta afro-brasileiro, autor, fotógrafo, ex-correspondente de guerra, ativista do Movimento Negro Brasileiro e um dos idealizadores do manifesto cinematográfico Dogma Feijoada. O curta foi realizado anos depois, e tornou-se um sensível recorte poético sobre Ismael Ivo, incomparável e genial bailarino afro-brasileiro, coreógrafo e ex-diretor do Teatro Alemão e do Teatro Municipal de São Paulo, morto em março deste ano vítima da covid-19.
Nascido em 1951, na cidade de Londrina (PR), Ari é filho do pequeno comerciante João Cândido Fernandes e da trabalhadora doméstica Maria do Carmo de Jesus Fernandes. Vive em São Paulo desde o início dos anos 1980 e dirigiu os premiados curtas-metragens Martinho da Vila, Paris 1977 (1977), Por que a Eritreia? (1979), O Rito de Ismael Ivo (2003), O Moleque (2005), Pacaembu – Terras Alagadas (2006) e Jardim Beleléu (2009), Ari é sem dúvida alguma um dos principais representantes do cinema negro brasileiro.
Ari Cândido também teve uma breve (mas importante) atuação como fotojornalista nos anos 1970. Seu livro Eritreia – Uma Esquecida Guerra de Libertação Africana (Editora Edicon), publicado em 1986, será relançado em versão revista e ampliada, sob a coordenação do jornalista e fotógrafo Nabor Júnior. A nova edição terá cerca de 70 fotografias, posfácio do fotógrafo Wagner Celestino e será publicada de forma independente pela revista O Menelick 2º Ato. “Trata-se da primeira publicação que faremos. A previsão de lançamento é para o início de 2022. Provisoriamente, o livro tem o título de Imagens e memórias do primeiro fotojornalista negro de guerra do Brasil”, relata Nabor. O novo livro terá um acréscimo de imagens e textos que pretendem iluminar as passagens de Ari Cândido como fotojornalista de conflitos armados pelo antigo Saara Espanhol e pelo Irã, além de contextualizar os acontecimentos que o levaram ao autoexílio.
Currículo Nota 1000
A verdade é que o curriculum vitae de Ari Cândido Fernandes, arrematado pelo “gentil” parecerista com uma esdrúxula “nota 1”, compreende uma das mais extraordinárias trajetórias profissionais no Brasil que incluem, entre outras grandes façanhas, impressionantes feitos nas áreas cinematográfica, literária e fotojornalística.
Nos anos 1970 Ari foi o único fotógrafo brasileiro a cobrir a guerra civil na Eritreia, país africano fronteiriço com Sudão e Etiópia, cuja independência só aconteceria em maio de 1993. Ari sentiu na pele todo o horror de uma guerra civil, com direito a bombardeios de caças e milícias armadas. Tudo isso vivendo com guerrilheiros a apenas 50 quilômetros da capital do país. Ari também cobriu conflitos armados no Irã e no antigo Saara Espanhol, quando passou cerca de um mês com membros da Frente Polisário da República Saharaui Democrática (R.A.S.D), então em guerra com o Marrocos.
De origem humilde, Ari Cândido foi influenciado pelo cinema ainda na adolescência, em Londrina, através do cineclubismo, também a porta de entrada para a sua militância política. Nessa época, ainda nos anos 1960, levava alguns filmes para serem exibidos nos centros acadêmicos da cidade, especialmente no Cine Clube Universitário do Diretório Acadêmico da Faculdade de Direito. Para conseguir as cópias de exibição, se aventurava de ônibus até São Paulo para pegar os filmes diretamente na Boca do Lixo, região no centro da cidade que reunia as principais produtoras de cinema (incluindo a Embrafilme). Numa dessas idas e vindas acabou preso no DOPS (Departamento de Ordem Política e Social) em Londrina, com uma cópia do longa São Paulo, Sociedade Anônima, de Luís Sérgio Person, debaixo do braço.
Já influenciado pelos ideais socialistas do Partido Comunista Brasileiro e pouco tempo depois do tenso episódio no DOPS, Ari se muda para Brasília, onde começa a estudar cinema na Universidade de Brasília (UnB). Lá inicia as atividades do Cine Clube da UnB, onde passa a exibir filmes e difundir “ideias comunistas”, distribuindo panfletos de “organizações obscuras” durante as sessões de filmes. A essa altura já era uma figura visada pelos militares. Por isso, com a rápida intervenção de um amigo mineiro, foi levado de carro até Ouro Preto, Minas Gerais, onde ficou escondido por cerca de um mês até finalmente conseguir sair do Brasil.
O ano era 1971 e, ameaçado pela Lei de Segurança Nacional, sob a acusação de prática subversiva em atividades estudantis e políticas, Ari seguiu para o autoexílio em Estocolmo, na Suécia. Lá, entre pequenos “bicos” como imigrante, conheceu integrantes dos Panteras Negras e chegou a ser vizinho do icônico cineasta sueco Ingmar Bergman. Em1975 mudou-se para Paris, onde se formou em cinema pela Nouvelle Sorbonne. E foi na capital francesa que realizou seu primeiro filme: Martinho da Vila, Paris 1977, um curta de oito minutos que acompanha as andanças e o olhar de Martinho da Vila por grandes avenidas, ruas e becos de Paris. A chance de trabalhar como correspondente de guerra data dessa época. Trabalhou como fotojornalista freelancer para importantes agências internacionais, como a francesa Gamma e a britânica Camera Press.
Além de se tornar livro, a experiência da cobertura da guerra na Eritreia também gerou o filme Por que a Eritreia? (1979), vencedor do prêmio de melhor documentário pelo júri popular na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo. Durante quase uma década de autoexílio, Ari viajou por vários lugares do mundo. Mas no ano de 1979, por conta da Lei da Anistia, decidiu retornar ao Brasil e se fixar em São Paulo.
Mas por que pouco ouvimos falar do trabalho e da trajetória de Ari Cândido Fernandes?
A resposta é simples.
Racismo estrutural brasileiro
Uma das mais sofisticadas engenharias do racismo estrutural é o apagamento de corpos e trajetórias negras que ousaram sair de seus lugares historicamente pré-estabelecidos.
O parecer do edital do Programa de Integração Cinema e TV da famosa rede de TV pública brasileira, citado no início desse texto, pode parecer inconcebível em pleno 2021. Hoje as políticas públicas, de um modo geral, parecem estar mais atentas a questões de representatividade e inclusão. Fato é que, até pouquíssimo tempo atrás, esse foi um dos mecanismos mais usados no jogo da eliminação de “corpos estranhos” (leia-se negros) da disputa de narrativas históricas, usando a “subjetividade” para justificar a manutenção do racismo e do status quo da supremacia branca no campo das artes e na academia.
Todavia, a luta contra o racismo e os desafios enfrentados ao longo de sua vida não foram suficientes para fazer Ari Cândido sucumbir a qualquer tipo de vitimização. Apesar das injustiças – muitas e notórias – sua trajetória está mais alinhada ao heroísmo e à coragem do que ao abatimento.
Conheci Ari Cândido em meados de 2010 na cidade de Cachoeira, no Recôncavo baiano. Na ocasião ele era a grande estrela do finado BAFF – Bahia Afro Film Festival, onde participava da mostra competitiva com o curta Jardim Beleléu (2009). Lázaro Faria, cineasta baiano e idealizador do festival (falecido em setembro último), foi quem nos apresentou. Na época, era apenas uma jovem realizadora iniciante, concorrendo na mesma mostra com meu terceiro curta, Black Berlim (2009). Para mim, tudo o que era falado e dito a respeito de Ari estava no lugar do mitológico. Sua figura imponente e cara de poucos amigos me intimidava e causava certo medo. Daqueles dias me lembro de suas falas, histórias, gestos largos e onipresença, que eram assistidas por mim de longe, num misto de receio e admiração. Alguns anos depois o reencontrei brevemente no Rio de Janeiro, no Encontro de Cinema Negro Zózimo Bulbul, mas desse segundo momento, trago só uma breve e fortuita lembrança de Ari no Cine Odeon.
Aos 70 anos de idade, completados em agosto passado, finalmente tive a honra de conversar com ele, mesmo que apenas por e-mail. Sua memória prodigiosa segue a todo vapor, não deixando escapar nenhum detalhe de sua espetacular trajetória que jamais deverá ser esquecida.
Sabrina Fidalgo: Como foi a experiência de realizar o seu primeiro curta em Paris e tendo um astro como Martinho da Vila como protagonista?
Ari Cândido: Em 1977, em Paris, encontrei meu ídolo da época, o cantor e compositor Martinho da Vila. Com ele rodei um documentário de 8 minutos. O curta foi exibido até na televisão angolana! Naquela época, em Angola tinha tomado o poder o Agostinho Neto, poeta e chefe supremo do MPLA, Agostinho Neto, que eu tinha conhecido em Oslo durante uma conferência da ONU – OUA em 1973. Olha que coincidência, não? Assim como foi uma coincidência encontrar Martinho da Vila em Paris em 1977. Enfim, a minha vida é marcada por muitas coincidências. Vou demarcá-las para você, ok?
SF: Ok, me conta…
AC: Em Londrina, entre 1969 e 1971 eu dirigia e agitava culturalmente minha cidade fazendo cineclubismo ligado ao centro universitário. Sai de Londrina porque fui preso no DOPS de lá, recém-chegado da Boca do Lixo em São Paulo. Fui preso antes da sessão do cineclube que dirigia, junto com o filme que estava programado para aquela sessão, o longa São Paulo S.A., de Luís Sérgio Person. Saí do DOPS de Londrina graças à interferência de muitos amigos e jornalistas. Naquela época eu ainda era menor de idade. Por conta desse episódio mudamos de cidade. Já a cópia do filme nunca mais eu vi, nem soube de seu paradeiro. Quiçá tenha ido direto para os arquivos do DOPS paranaense. Bom, aí fui para Brasília cursar música no básico e com a finalidade de terminar o curso em Cinema, que era meu sonho desde criancinha. Mas em Brasília ”aprontei” novamente. Fazia cineclubismo cultural com os estudantes, divulgava a revista de teatro que vendia e na qual também escrevia. Por conta disso estava sendo ameaçado de ser preso e processado na Lei de Segurança Nacional, artigo 477, por quebra do patrimônio físico nacional. Isso porque eu quebrei todas as vidraças do restaurante universitário da UnB quando um agente infiltrado do DOPS – que fingia oferecer cafezinhos de graça aos estudantes em frente ao restaurante – foi tirar meus cartazes que divulgavam a venda da revista Palco/Plateia e os filmes que eu exibia no cineclube da UnB. Quando fui interpelar o agente infiltrado do DOPS rolamos em murros e, engalfinhados, caímos por cima das vidraças da cantina universitária. Daí, aconselhado pela Sylvia Orthof, minha professora de teatro na UNB, sumi de Brasília.
Com a ajuda do amigo de classe Armando Lacerda (amigo até hoje), de Minas Gerais, fui de carona em seu carro amarelo cor de gema para a casa dos pais dele em Ouro Preto, onde fiquei um mês hospedado. Armando se tornou um cineasta também, fez documentários e dirigiu a TV Senado na era Sarney. Olha novamente a incrível coincidência: anos depois, já de volta ao Brasil, estava participando de um festival de cinema em Salvador no início dos anos 80, com meu filme Por que a Eritreia?, quando dei de cara com o Armando Lacerda no bar do hotel que estávamos hospedados em frente a praia da Pituba. Fomos para a praia, onde tomamos muitas caipirinhas e cervejas, até que Armando resolveu ir nadar no mar e logo começou a se afogar. Fui salvá-lo e quase me afoguei junto. Mas consegui resgatá-lo e acabei retribuindo por ele ter me salvado em uma ocasião em Ouro Preto em 1971: nas escadas no Fórum de Ouro Preto, onde acontecia o julgamento pela expulsão da cidade do grupo Living Theater, fui preso e jogado no camburão da polícia local. E quem me tirou de dentro do camburão? Armando Lacerda! Sua família era rica e conhecida em Ouro Preto, proprietários de uma fábrica de tijolos. Enfim, por sorte, me liberaram. Pouco depois eu sairia do Brasil via Rio de Janeiro pelas asas da companhia aérea Aerolíneas Argentinas, através de uma organização de intercâmbio religioso chamada ICYE, direto para a Suécia. Ao descer no aeroporto de Estocolmo, no meio da neve tinha um padre me esperando com uma plaquinha com o meu nome impresso: “Ari Fernandes”.
SF: Me conta mais sobre a sua ida para a Suécia, como foi sua chegada em Estocolmo? Foi difícil se adaptar ao frio e a uma cultura totalmente diferente?
AC: Como falei, fui recebido no aeroporto de Estocolmo por um padre. De cara recebi um casaco, porque estava nevando e eu estava todo despreparado, morrendo de frio. Fiquei impressionado com meu primeiro contato com a neve. Na Suécia fiquei de 1971 até 1975, quando sai em direção à Paris de carona em um fusca creme de uma amiga. Na Suécia trabalhei em creche para crianças e estudei sueco na Associação dos Trabalhadores Imigrantes. Também fui estivador, e com o dinheiro ganho comprei minha câmera de filmar: uma Bolex Electric 16 mm belga. Com ela filmei o Martinho da Vila em Paris em 1976/77. Bom, na Suécia ainda trabalhei em padarias e aprendi muito sueco com as crianças nas creches que trabalhei. Também estudei fotografia com um rapaz, Joy Benigh, da ilha de Madagascar. Fiz também um curso intermediário cultural e filmei e fotografei tudo o que pude. Fiz grandes amizades com gente da Eritreia, Angola, Moçambique, Chile, Vietnã do Norte. Fotografei a menininha que tinha sido queimada por Napalm no Vietnã e que foi homenageada pelo premier sueco Olof Palme na praça em frente ao metrô principal de Estocolmo. Ainda fui a Oslo, na conferência da OEA-ONU, e encontrei lá (e filmei também) o poeta Agostinho Neto, primeiro presidente da Angola liberada do colonialismo português. Tudo para mim era maravilhosamente curioso e eu mergulhava de peito e alma na sociedade do país que me recebeu de braços abertos. Encontrei muitos brasileiros que lá viviam naquele período, como o Fernando Gabeira, o Antônio Duarte Marinheiro e o Pedro Nicácio. Havia muitos latinos-americanos “fugindo” da violência na América Latina. Idem para os gregos, iranianos, africanos e até mesmo alguns ex-Panteras Negras dos EUA. Eu me misturava com todos e fazia amizades.
E o que eu podia eu documentava, em filmes em super-8 ou fotografando. Também trabalhei em um hospício, onde aprendi muito sobre a sociedade sueca, sobre eu mesmo, sobre o machismo do homem latino-americano, sobre o individualismo e os limites da sua individualidade, sobre os benefícios da construção de uma sociedade, sobre o aspecto sanitário-higiênico tão importante hoje em tempos de pandemia, sobre o seu limite e o limite do outro. Sempre digo e repito: queres aprender sobre um povo? Mergulhe em seus hospitais psiquiátricos, onde eu caí por pura necessidade de sobrevivência. Levei mais de três anos para ter o primeiro amigo sueco. Assim são os povos que moram em ilhas (quiça bolhas) não continentais, como japoneses, suecos, etc. Mas foi assim que aprendi e compreendi melhor os filmes do Akira Kurosawa, do grande Ingmar Bergman e outros cineastas suecos. Foi forçado, mas foi assim. Fábricas, creches, restaurantes, porto, etc. Com 20 anos incompletos, caí de peito e alma tentando desvendar essa sociedade toda loira e de uniforme sanitário que era a Suécia, inclusive tentando aprender a pesada língua deles.
SF: Agora dando um pulo no tempo, para o Ari radicado em Paris, cineasta e fotojornalista. Quando você se deu conta de que provavelmente seria o primeiro correspondente de guerra negro do Brasil?
AC: Não tenho conhecimento de outros fotógrafos negros em conflitos armados no mundo. Na Eritreia só esteve um jornalista brasileiro, o carioca Neiva Moreira, de uma revista política via Cuba, mas ele não é e nunca foi negro ou afro-brasileiro. Estive no Saara Ocidental, com a guerrilha da Frente Polisário. As matérias com fotos da Eritreia foram publicadas no jornal Em Tempo, enviadas de Paris. Ainda estive no Irã, em Teerã e Jaz (cerca de 800 km da capital) no final de 1979, na derrubada do xá Reza Pahlavi. Fiz a primeira foto do aiatolá Ruhollah Khomeini, ainda em Paris, em 1979 [o aiatolá, líder espiritual da revolução islâmica, regressaria ao Irã depois de um exílio de 15 anos para assumir o comando do país].
SF: Como foram as estadias na Eritreia como fotógrafo de guerra?
AC: Estive em 2 períodos na Eritreia. Na primeira ida fiquei uns três meses entre 1978 e 1979, depois voltei com duas malárias; uma delas que me levou para o Hospital de Doenças Tropicais de Paris, com 40 graus de febre e risco de morte. Na segunda ida fui via Paris-Damasco-Cairo-Cartun e depois por terra até a Eritreia – com uma equipe tunisiana para realizar meu filme de média-metragem Por que a Eritreia?. Dessa vez fiquei quase três meses. Foram seis meses nas áridas terras saarianas da Eritreia. Fiquei entre as cidades e os povoamentos de Tessanne-Agordat-Barentu, e nas montanhas – cerca de 50 km da capital Asmara, então em guerra feroz. Do lado da Somália, as tropas etíopes estavam enfrentando a Eritreia. E ao norte e ao leste acontecia a pesada e destrutiva guerra de Ogaden entre Somália e Etiópia.
SF: É verdade que você conheceu em Estocolmo membros dos Panteras Negras? Como se deu esse encontro?
AC: Sim, me encontrava com Panteras Negras em Estocolmo. Não lembro os nomes, mas um deles era bem carismático. Uma noite ele me convidou para ir até sua casa, numa área distante. Ele estava com a sua bela esposa sueca e me disse que pegasse um táxi, porque estava nevando muito. Se eu pisasse errado poderia afundar uns 20 centímetros na neve. Sua enorme casa era muito distante, o que significava maior poder aquisitivo. Claro que não fui indiscreto em perguntar de quem era a casa ou ainda se a sueca era casada com ele ou não. Bom, logo na entrada, após me servir um drink quente, ele fez questão de ler e me fazer ver um grande livro, colocado bem no hall de entrada da casa sobre um púlpito iluminado por um abajur. O livro era escrito por Karl Marx, e o Pantera Negra – enorme, de barbicha – esbravejava contra o texto e o autor exatamente numa passagem do livro que falava da África e de negros e africanos em geral. Ele me apontava as incongruências marxistas para com o povo africano. Eu concordava com ele e ria muito, dizendo que cabia a nós mudar esses erros e que estávamos em 1974 e não no século passado. Quase levei dele um sapato! Bem nessa hora, a linda sueca nos anuncia que o jantar estava na mesa. Fui oportunamente salvo dessa. Depois me encontrei com outros militantes que compareciam às enormes e barulhentas manifestações, quase sempre concentradas numa grande praça localizada em frente à estação central Tunnelbana.
SF: E como foi o seu recomeço em São Paulo nos anos 1980? Qual área você tem se dedicado mais nos últimos anos?
AC: Em fevereiro de 1980 cheguei à São Paulo e fui hospedado na casa de uma amiga teatróloga. Depois, aluguei um quarto na casa da feminista Solange Padilha, em Perdizes. Rapidamente comecei a procurar trabalho e consegui de cara ser chamado para fotografar no presídio feminino do Carandiru um grupo de detentas que estava encenando uma peça de teatro.
Depois consegui trabalhar como professor da Universidade de Taubaté (UniTau), no Vale do Paraíba. Para isso, pegava um ônibus três vezes por semana para ir dar as aulas que começavam cedinho, às 7h30. Fui professor de fotografia no Departamento de Comunicação Social por nove anos. Depois fui convidado a dar aula de fotojornalismo na Faculdade Cásper Líbero, onde fiquei por quase dez anos. Dava aulas em duas faculdades ao mesmo tempo. No meio disso tudo fui escolhido pelo Movimento Negro Unificado (MNU) para ser Assessor de Gabinete da Assessoria para Assuntos Afro-brasileiros, órgão sediado dentro da Secretaria de Estado da Cultura de São Paulo. Na ocasião criamos o Projeto Zumbi, do qual fui coordenador entre os anos de 1983 e 1987, durante as gestões dos secretários Pacheco Chaves e Jorge da Cunha Lima. Além do Projeto Zumbi, fizemos o resgate histórico de A imprensa negra paulista (1915-1963) [da antropóloga Miriam Nicolau Ferrara], com pesquisa e prefácio do historiador e sociólogo Clóvis Moura e lançamos o Calendário Afro-Brasileiro de Cultura, em 1986.
Ainda consegui (não sei como) fazer cinema. Finalizei o curta-documentário O Rito de Ismael Ivo (2003) e filmei o curta ficcional infanto-juvenil O Moleque (2005). Em 1996 rodei o documentário Pacaembu – Terras Alagadas (2006). Em 2009 rodei o curta ficcional Jardim Beleléu, com Flávio Bauraqui, José Wilker e grande elenco. Filmamos na cidade de Tiradentes e com esse filme ganhei inúmeros prêmios nacionais e internacionais. Dei o nome ao manifesto Dogma Feijoada SP e ainda hoje estou tentando fazer cinema. Tenho inúmeros roteiros cinematográficos escritos. Me aposentei como professor e não dou mais aulas… só não me aposento mesmo é do cinema e da fotografia. ///
Sabrina Fidalgo é roteirista e cineasta carioca. Realizou os curtas Sonar 2006 – Special Report (2006), Das Gesetz des Staerkeren (2007), Black Berlim (2009), Cinema Mudo (2012) e Personal Vivator (2014), o documentário de média-metragem Rio Encantado (2014) e a ficção de média-metragem Rainha (2016), além de vários videoclipes. Seu último curta, Alfazema (2019), foi duplamente premiado com o troféu Candango de Melhor Direção e Melhor Trilha-Sonora no 52º Festival de Brasilia do Cinema Brasileiro. É colunista da Vogue Brasil, foi articulista do HuffPost Brasil e é colaboradora esporádica da coluna Quadro Negro da Folha de São Paulo.