Hugo Souza – Come Ananás
O Brasil já viu esse filme de toda essa naturalidade com que as mais escancaradas tentativas de extorsão de um poder a outro são apresentadas como o trivial da política, e os mais tímidos sinais de resistência a elas como “falta de diálogo”.
Na Globo, TV aberta, resiste às décadas o programa de reprise de novelas “Vale a Pena Ver de Novo”. Nesta quarta-feira, 31, em meio à escalada das chantagens de Arthur Lira e dos ruralistas ao governo, estreou na GloboNews, TV a cabo, o segmento de já vi esse filme “Vale a Pena Servir ao Golpe Outra Vez”, inserido no programa Estúdio I.
Dicionários definem a palavra “escalada” como aumento progressivo da intensidade de uma atividade bélica ou violenta. Na chamada “mídia de referência” em geral, a escalada de vigarismos do presidente da Câmara e comparsas vem sendo noticiada como “derrotas do governo”, “Congresso insatisfeito”, “erros de articulação política”.
Numa “narrativa” – para usar a palavra da vez – inimaginável para uma mídia que se arvora “de referência”, os grandes vilões da “crise política” são Alexandre Padilha, ministro da Secretaria de Relações Institucionais, Rui Costa, ministro da Casa Civil, e o próprio Lula, que, segundo a “narrativa”, estaria com “preguiça” de entrar em cena na articulação com o Congresso.
Nesta quarta, toda essa naturalidade com que as mais escancaradas tentativas de extorsão de um poder a outro são apresentadas como o trivial da política – e os mais tímidos sinais de resistência a elas como “falta de diálogo” – virou no Estúdio I tagarelice descontraída sobre “o risco de Lula-Lira virar Dilma-Cunha”.
Coube a Flávia Oliveira pôr um pingo no Estúdio I, dando um pito em quem, pisando distraído nos astros celestes, já ensaia servir ao golpismo outra vez:
Em uma República digna da designação, o poderoso cargo de presidente da Câmara dos Deputados deveria ser, via regramentos, blindado contra banditismos, pelo menos os mais reles. No Brasil, não é. Quando está posta a conjunção de presidente da Casa e plenário bandoleiros contra um governo democrático, quem freia? O Supremo, que abriu caminho para a ascensão de Lira?
A mídia “de referência”, que poderia ter papel importante em defesa da institucionalidade, mas que desempenhou o mais imundo papel no golpe de 2016 e sobre isso nunca deu o braço a torcer?
Nesta quarta, a repórter Malu Gaspar, d’O Globo, informou que o general Gonçalves Dias, nomeado por Lula para o GSI – mas já demitido -, ou um dos seus subordinados simplesmente falsificou um relatório sobre o 8/1 enviado ao Congresso.
Não tarda e um nobre deputado pega um fato como este no ar e contrata algum jurista “conservador”, junta com algum professor da USP e prepara um pedido de impeachment. Já há pelo menos um trancado na gaveta de Lira, ridículo, apresentado pelo PL. Com mais um ou dois, não custa, não tarda para Lira começar a sacudir a chave da gaveta nas fuças do governo.
Nesta toada da martelagem midiática de que a “rota de colisão” com Lira é resultado de inabilidade de articulação política do governo, e não de um presidente da Câmara, mais um, exercitando habilidades golpistas, não tarda e a mídia “de referência” começará a brandir, de novo, seu mantra cínico de 2016: “impeachment não é golpe porque está previsto da Constituição”.