Meus pais foram presos em Brasília. Fiz tudo o que podia para ajudá-los’

Luciana Bugni

Colaboração para o TAB, de São Paulo

Os pais de Felipe* sempre foram conservadores. Religiosos e servidores públicos, defendiam o que hoje se chama família de bem. “Os comentários preconceituosos sempre aconteceram, mas, como fui criado nesse ambiente, cresci sem perceber. Só comecei a confrontar já adulto”, ele conta. A animosidade começou quando Dilma sofreu impeachment, em 2016. Depois, escalou bastante a partir da campanha de Bolsonaro na presidência. A partir daí, o diálogo ficou complicado, como em tantas famílias.

Após a eleição de 2022, os pais de Felipe, que têm mais de 60 anos, passaram a frequentar o quartel da cidade em que moram no Sul, a cerca de 1.500 km de Brasília. Eles seguem grupos bolsonaristas no WhatsApp, Telegram e Facebook. “Passei a me calar nos eventos, tentando ficar neutro — só me manifestava quando era algo muito absurdo”, diz.

Quando pessoas próximas tentavam combater fake news com informações verificadas de veículos de imprensa profissionais, os pais usavam argumentos que são comuns entre apoiadores do ex-presidente: “mídia lixo, comprada pelo PT, doutrinação de esquerda”. A relação foi se degastando.

O período no acampamento em frente ao quartel, desde novembro, era visto pelos pais de Felipe como uma festa: um grupo de idosos, que passava algumas horas do dia juntos. “Era uma comunidade, falando a mesma língua, dividindo as mesmas ideias. Passaram Natal e Ano Novo naquela calçada. Isso cativou, virou um passatempo e tomou uma proporção que culminou na crença de que iriam até Brasília tomar o Planalto e não aconteceria nada”, ele conta.

A família estava preocupada com a posse do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e afirmava, nos poucos encontros, que isso não poderia acontecer porque perderiam o dinheiro que tinham guardado, entre outras fake news. Qualquer argumentação via WhatsApp era ignorada. “A rigidez do núcleo era tanta que fui descobrindo que esses grupos em frente aos quartéis eram financiados pelos integrantes, que ‘pagavam taxas’. Ou seja, minha família estava patrocinando, de certa forma”, relata, inconformado.

Felipe não sabia que os pais planejavam ir a Brasília. Descobriu por uma mensagem de texto, quando a família tentou marcar o almoço de domingo (8). Os que souberam dos planos tentaram impedir a viagem, que duraria cerca de 20 horas, de ônibus. A seguir, ele relata o que aconteceu desde que os pais pisaram na Praça dos Três Poderes.

Meus pais dizem que chegaram [a Brasília] na madrugada de sábado (7), e que passaram a noite esperando o horário da manifestação. Pensaram em acampar, mas acharam que seria desconfortável demais. Ficaram [acordados] direto, esperando. Participaram da manifestação no domingo à tarde mas, quando se deu a confusão e a polícia finalmente interveio, decidiram ir a um hotel. Até que veio um boato de que se andassem nas ruas seriam presos — por isso, decidiram ficar no QG armado pela organização. Lá, teriam apoio do Exército, segundo diziam os grupos. Passaram mais uma noite lá.

Em casa, sem nenhuma informação, eu não conseguia dormir. Soube depois que eles foram escoltados a noite toda nesse local, até que foram encaminhados, na manhã de segunda-feira para os ônibus que o Exército disponibilizou. Diziam que iam para a rodoviária. No trajeto, a Polícia Militar informou que estavam presos.

Eles foram encaminhados à triagem da polícia e as informações pararam de chegar, pois os celulares foram confiscados. A última notícia era que meus pais haviam sido separados. Fiquei procurando notícias nos sites durante o trabalho, mas não consegui fazer mais nada. Pensei que minha mãe não sobreviveria a uma noite na cadeia. Enquanto eu procurava um advogado criminal, algo que nunca havia feito antes, pois nenhum conhecido havia cometido crimes, ligava para familiares e tentava unir todo mundo (os de esquerda e os de direita). Tínhamos um problema maior para resolver e não queria ficar acusando os culpados.

Passei a madrugada falando com advogados até saber que meus pais haviam sido liberados e ligaram do celular de alguém

Eles estavam indo para a rodoviária, pois a recomendação era que pegassem um ônibus de linha. Porém, nesse local, alguém que se identificou como um líder religioso recolheu os idosos num templo. Ali, muita gente se reencontrou com seus grupos e abandonou a ideia de voltar com um ônibus comum. Existia um novo boato de que ônibus fretados chegariam para buscá-los. Daqui, sabíamos pelas notícias que os ônibus estavam retidos, mas nas poucas ligações telefônicas que conseguimos fazer, eles duvidavam de tudo o que dizíamos.

Pensei em comprar uma passagem de avião, mas precisava falar com eles para garantir que entrariam no voo a tempo. Conseguimos contato com uma mulher do grupo na madrugada de terça. Pedi para falar com meus pais e eles se negaram a voltar de avião.

Meu pai disse que estava passando por tudo isso por minha culpa, porque eu não havia votado na direita

A mulher que era dona do celular me impediu de continuar a conversa com eles. Pareceu que ela sentiu que eles podiam ceder se continuassem falando com a família. Eu me exaltei e ela ameaçou: ‘Você baixa a bola, ou não fala mais com sua família’. Tive uma sensação de sequestro.

Duas horas depois ligaram de novo, dizendo que voltariam se comprássemos passagens de avião para o grupo todo. Consultei um advogado novamente para saber se isso poderia configurar que eu estava apoiando o golpe, mas só queria trazer meus pais para casa em segurança. Garantiram que não teria problema. Dividimos em vários cartões para dar conta da despesa. Emiti todas as passagens, eram mais de dez. Era minha terceira noite sem dormir. Na quarta (11), eles estavam embarcando de volta. Não falaram comigo.

Achei que voltariam arrependidos de tudo que aconteceu, mas voltaram ainda mais convictos dos ideais do grupo

Não sei quando e se voltaremos a nos falar, mas pelo menos tenho certeza de que fiz tudo o que podia para ajudá-los.

*Nome fictício. Informações como a cidade de origem e as profissões dos citados também foram omitidas para que o entrevistado tenha possibilidade de reatar as relações familiares, como almeja

Luciana Bugni é jornalista e escritora

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