Há um sujeito que estudou comigo no primeiro ano do segundo grau. De vez em quando, ainda o encontro por aí. Desde a época da escola, ele se comprazia em discordar de mim. Questionava publicamente tudo que eu dizia, absolutamente tudo. Se não podia discordar radicalmente, relativizava minha razão.
Passaram-se 43 anos e ele continua assim. Já falei dele noutros artigos. Grisalhão, ele passeia de Renegade com sua camisa polo cor-de-rosa, daquelas que carregam um jacarezinho no peito.
Ele acredita que Bolsonaro seja boa praça. Só tomou vacina porque os filhos o obrigaram. Diz que o PT desgraçou o Brasil. Afirma que somente vagabundos são pobres. Acha que mulheres estupradas provocaram, de alguma forma, seus agressores. Considera que essa história de racismo é mimimi. Pensa que as mudanças climáticas são naturais. E não perde a chance de usar “viado” como detração. Para ele, o politicamente correto tirou a graça do mundo.
Outro dia, no mercado, tentei esconder-me, ludibriá-lo nos corredores. Mas ele me farejou, como sempre faz. Não pude rejeitá-lo. Sorri amarelo. E ele começou… sim… com o papo de que há uma conspiração para provar que a Terra é redonda.
Sou um completo idiota, admito, porque sempre acabo mergulhando nessas discussões, acreditando ingenuamente que meus argumentos convencerão o interlocutor.
Disse-lhe para olhar a Lua e os outros planetas, esses esferoides que circulam nas vizinhanças. Ele argumentou que via uma Lua sempre igual e também plana. Em sua opinião, seria o motivo pelo qual um dos lados dela está sempre invisível para nós.
Tentei explicar sobre o movimento de rotação, sobre o nascer e o cair do Sol. Falei do movimento aparente das estrelas no céu noturno. Recorri à circunavegação. Lembrei do efeito Coriolis (em exagero). Expliquei como as rotas aéreas mais curtas não são linhas retas sobre o planisfério. E caí na armadilha de falar sobre as fotos da NASA e da Roscosmos. Aí, ele veio com aquela história de que fotos podem ser forjadas. Declarou que muito bem podem ser montagens dos conspiracionistas.
Depositei as bananas sobre o carrinho e, com gestos nervosos, expliquei que a gravidade promove uma atração interna de equivalência, em todas as direções, gerando esferas sempre que reúnem considerável quantidade de massa.
Ele riu de tudo, encheu o carrinho de congelados e partiu, mangando de mim. “Você precisa ser mais humilde, Wartão”, criticou, enquanto ria e me abraçava. Senti um perfume doloroso que me pareceu Lancome. “Seu discurso bonito não convence ninguém, e o Sonda continua sendo um supermercado plano”. Gargalhou e se foi, deixando recomendações à família.
Quando cheguei em casa, senti-me arrasado. Deitei no sofá, sob tênues luzinhas amarelas e comecei a discutir a episteme das minhas crenças. Logo me veio um lampejo. O problema é a palavra “prova”.
A rigor, “provas” inexistem. Construímos fatos narrativos. Um exemplo: o Brasil perdeu da Alemanha por 7 a 1 na Copa do Mundo de 2014. Mas como provar que isso realmente aconteceu?
Bem, há gravações magnéticas do jogo, a locução do Galvão, depoimentos de pessoas que choraram no Mineirão. Assim como não existe questionamento acerca da existência de Dom Pedro I e de que, de uma forma ou de outra, foi quem declarou a Independência do Brasil. Afinal, há um monte de livros contando essa história.
Agora, se a gente for recorrer ao implacável filtro científico, nada pode ser categorizado como “prova”. Porque “prova” é constatação integral e irrefutável de que um fenômeno seja real.
Porque resta sempre uma dúvida, por menos plausível que seja. A derrota em 2014 pode ser um sonho (meu, seu ou de outro). Pode ter sido implantada em nossas memórias. Pode ter sido uma encenação midiática. Pode ser que nem existam Mineirão, Seleção Brasileira e futebol.
Assim como mentes bem articuladas (corpóreas ou não) podem ter inventado Vasco da Gama, Cabral, Pedro I e Pedro II. Ou pode ser que ninguém tenha concebido nada disso. Seriam, pois, criações do nosso inconsciente coletivo. Ou do seu inconsciente privado e particular, uma quimera que você supõe compartilhar com os demais.
A rigor, não existe prova da existência de elétrons, das plêiades, da matéria escura, da energia escura, da confusa realidade quântica. O que temos são evidências tão fortes e bem estruturadas das quais somente os malucos, desonestos e ignorantes ousam discordar.
Como muitas das nossas evidências são complexas demais e de cognição indigesta, é natural que as pessoas tendam a refutá-las. É o caso da Teoria da Evolução. Para a mente humana, é mais fácil acreditar no criacionismo, em Adão e Eva, e nesse gênesis de 5 mil anos. É pela facilidade de intelecção, por exemplo, que se propaga a crença dos evangélicos, especialmente os pentecostais.
A rigor, o que temos são, de fato, apenas teorias, mas teorias tão bem fundamentadas que só poderiam expor a verdade.
Categorizações e métodos, contribuições de Aristóteles e Descartes, nos ajudaram a crer em coisas que não vemos, ouvimos ou percebemos pelo tato. Espinosa também ajuda, ao explicar as sensações, que precedem os sentimentos. São automáticas e processadas sem nossa autorização, antes da composição do raciocínio.
Há uma frase fundamental para ancorar a credulidade ontológica: “penso; logo, existo”. Novamente, a realidade está mediada. Ela não é direta nem definitiva. Parto de uma premissa discursiva para confirmar um conceito.
Terminei minha reflexão com a certeza de que é a comunicação e a organização de signos-significados que confere força ou fraqueza à exposição do conjunto de evidências. Nossa semiosfera, hoje, é de ideias em dispersão e distanciamento. Solução: contribuir de pouquinho para um rearranjo das forças de gravitação do bom senso. Demora. Mas cada esforço conta.