Construir Resistência
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Meninos, eu vi!

Por Sonia Castro Lopes

 

Eram muitos. Quase todos muito jovens. Com os rostos parcialmente cobertos pelas máscaras, manifestavam-se pelo brilho do olhar e pelos braços erguidos em punho cerrado. Foi uma manifestação cuidadosa, mais contida que as outras, nem por isso menos emocionante. Na última sexta feira (14) estudantes,  professores e servidores da maior e mais antiga universidade do país – a UFRJ – concentraram-se no Largo de São Francisco, no centro do Rio de Janeiro, para protestar contra a falta de recursos que poderá inviabilizar as atividades da instituição no próximo semestre. O ato foi realizado por iniciativa do Fórum de Mobilização e Ação Solidária (FORMAS) que reúne o Sindicato dos Trabalhadores em Educação, a Associação de Docentes, a Associação de pós-graduandos, o Diretório Central de Estudantes e a Associação dos Trabalhadores Terceirizados. A concentração teve início por volta das 17 h e às 19 h os manifestantes seguiram em passeata até a Cinelândia.

 

O local escolhido para a concentração dos manifestantes foi a praça diante do prédio que atualmente abriga os cursos de história, filosofia e ciências sociais – o IFCS. A escolha do local foi emblemática. Não só porque é uma das raras unidades da UFRJ que se localiza no centro do Rio, mas pelo simbolismo do prédio. Construído no século XVIII originalmente para abrigar a Sé do Rio de Janeiro, o edifício sediou a Academia Militar entre 1812 e 1858 e a partir de 1874 tornou-se a sede da Escola Politécnica. Em 1966 essa escola passa a denominar-se Escola de Engenharia e foi transferida para a cidade universitária, na ilha do Fundão. Em 1970 no auge da ditadura civil-militar (1964-1985) o IFCS ali se instalou tornando-se um celeiro de estudantes e professores conscientes e politizados, de onde tradicionalmente parte uma militância sistemática contra práticas autoritárias e medidas arbitrárias.

 

Como já foi aqui noticiado (#Minerva pede socorro) é notória a política do atual governo em sua sanha demoníaca contra as universidades públicas. Dos quase R$ 300 milhões orçados para o exercício de 2021 menos da metade foi liberada, ficando sob a responsabilidade do Congresso Nacional a aprovação da liberação do restante dos recursos. Na última quinta feira (12) uma parcela foi liberada, mesmo assim os recursos só permitem o funcionamento da universidade até o mês de setembro. As verbas represadas são necessárias para cobrir os gastos discricionários (não obrigatórios) mas que dizem respeito a despesas como contas de água, luz, serviços de limpeza e manutenção das unidades. Muitos alunos de graduação deixaram de receber a bolsa-auxílio que lhes permite a continuidade dos estudos.  Não é difícil avaliar a consequência desses cortes.  Significa a interrupção de estudos e pesquisas relevantes para o desenvolvimento científico em todas as áreas do conhecimento, especialmente pesquisas sobre a Covid-19 e projetos em andamento capazes de produzir uma nova vacina para conter a pandemia que assola o país há mais de um ano.

 

Em editorial da última quinta feira (12) o jornal O Globo manifesta sua preocupação com a crise que perpassa as universidades públicas. Contudo, adverte que é preciso rever o modelo de financiamento que possui um custo acima do padrão internacional. Trata-se, na concepção deles, de um modelo errado de gestão em que os gastos são pressionados pelo exagero das folhas de pagamento de funcionários da ativa e de aposentados. Diz, textualmente: “(…) até hoje as universidades públicas resistem a práticas comuns em instituições privadas ou no exterior, como remuneração atrelada à produtividade e desempenho (…) e por aí vai.

 

Ora, esquecem-se os defensores do privatismo como é difícil ingressar numa universidade pública, notadamente após os dispositivos da atual CF em relação à admissão do corpo docente e demais servidores. Concursos com pouquíssimas vagas (no caso dos docentes, em geral, apenas uma) e muitos concorrentes, relatórios bianuais para promoção funcional onde os professores são avaliados por comissões e precisam fazer um determinado número de pontos em todas as instâncias: ensino, pesquisa, extensão, administração. Isso sem mencionar os professores de pós-graduação que precisam intensificar a produção de  pesquisas para publicar nas revistas mais conceituadas de sua área, orientar diversos alunos, participar de bancas, congressos, reuniões de colegiados. Somos avaliados sistematicamente. Nossa produtividade é testada o tempo inteiro. Mas para os defensores da privatização, dos quais esse jornal é porta-voz, é preciso rever esse modelo urgentemente, sob pena de faltar recursos para a universidade pública no Brasil.

 

Num país destroçado pela pandemia, pela miséria, pelo desrespeito às instituições democráticas, pelas ‘boiadas’ que passam cotidianamente, a educação é mais um setor abandonado entregue a um ministro decorativo, pífio,  que segue as orientações bolsonaristas e comunga das mesmas idéias retrógradas que pregam escola sem partido, ensino domiciliar e tantas outras pautas  excludentes que ferem a própria Constituição Federal, bem como as normas preconizadas pela lei máxima de educação (LDBEN/1996).

 

Mas os estudantes resistem e haverão de resistir. Digo estudantes porque, na verdade, eles eram a maioria esmagadora na passeata de ontem. Empunhando bandeiras, cantando, gritando palavras de ordem manifestavam-se de forma ordeira, cuidadosa, todos portando máscaras protetoras. “Que contradição/tem dinheiro pra banqueiros/mas não tem pra educação” ; “Não vai ter corte/vai ter luta” eram as palavras de ordem proferidas pelos manifestantes. Faixas com os dizeres Bolsonaro genocida, A UFRJ resiste, Em defesa da universidade pública eram recorrentes, misturadas às bandeiras de alguns partidos progressistas e das associações ali presentes.

 

Foi um espetáculo bonito de se ver.  Confesso que me emocionei diante do prédio onde fiz minha graduação em história nos idos dos anos 70, quando a  ditadura nos impedia de qualquer tipo de manifestação e víamos nossos colegas sumirem, tragados pela crueldade da tortura, da morte ou do exílio. A professora aqui só conseguiu conter o sentimento de nostalgia pelo passado quando se misturou aos jovens (devidamente vacinada e com duas máscaras de proteção) e percebeu em seus olhares o orgulho de serem filhos de Minerva e poderem expressar em suas falas e gestos que RESISTIR é preciso.

 

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