Memórias dos ‘anos de chumbo’

Entre achados e perdidos 

 Por Sonia Castro Lopes

Aluna do curso de história da UFRJ, saí do IFCS no Largo de São Francisco para pegar o ônibus 219 (Praça XV-Usina) na Rua da Carioca rumo ao bairro da Tijuca, onde morava. Seis da tarde, ônibus apinhado de gente. Paguei a passagem, enfiei a carteira de qualquer jeito na sacola e fui me movendo com dificuldade, espremida no meio de toda aquela multidão. Chegando em casa deixei a bolsa na poltrona e, depois do jantar, ao ver meu maço de Hollywood quase vazio, me dirigi ao boteco da esquina. Qual não foi minha surpresa ao perceber que a carteira tinha sumido. Para aliviar minha tensão, o dono do bar me fiou os cigarros e, sem dinheiro algum, precisei recorrer aos parentes para as despesas do dia seguinte. Pedi à diretora da escola um dia de folga para providenciar a segunda da via da identidade que se fora com o dinheiro, talão de cheques e uma carteirinha do Instituto de Educação do ano anterior que ainda conservava comigo.

Dia seguinte estava eu concentrada assistindo aula na faculdade quando um simpático amanuense chegou à porta e me chamou pelo nome.  Pedi licença e saí. Dei de cara com meu avô que recebera um telefonema da PM avisando que meus documentos foram achados, mas só poderiam ser devolvidos à própria dona. Mamãe o acompanhava aflita e dizia que eu não iria desacompanhada ao batalhão na Praça Tiradentes, onde supostamente se encontravam meus perdidos. O trajeto era curto, mas me pareceu imenso. Os dois se atropelavam, perguntavam onde eu me metera na véspera para que meus documentos fossem parar na PM. Só conseguiam pensar nos “aparelhos” subversivos onde achavam que eu me enfiava às vezes depois das aulas. Santa inocência! Respondi que isso era impossível, cheguei a pagar a passagem do ônibus no dia anterior e, com certeza, bateram minha carteira no 219. O pior aconteceu quando lá chegamos. Fomos atendidos por um soldado que me encaminhou à sala do “tenente”, mas ordenou que entrasse sozinha, os acompanhantes teriam que permanecer na antessala. Olhei pra minha mãe que a essa altura já estava com cara de choro enquanto meu avô passava a mão na careca, gesto típico de preocupação ou premonição de que algo grave estava para acontecer.

Lá dentro, atrás de uma mesa enorme, encontrei um rapaz jovem, baixinho, olhos e cabelos claros que me estendeu a mão amigavelmente. Disse que os documentos foram achados na rua, sem a carteira, dinheiro e talão de cheques. Melhor, o que daria trabalho mesmo era tirar novamente a carteira de identidade, recém obtida. Antes de me entregar o documento resolveu fazer um interrogatório para mostrar serviço. Concluiu logo que eu era “professorinha” pela carteira do Instituto que denunciava meu recente passado de normalista. Indagou onde eu trabalhava, se estudava, que curso fazia e balançou a cabeça ao saber que era aluna do IFCS. “Cuidado, moça, ali tem muitos comunistas, não se meta com eles… já pensou se tivesse perdido a carteira dentro da faculdade? A essa hora já estaria servindo de identidade falsa aos subversivos.” Racionei rápido e o demovi de suas fantasias assegurando que não costumava andar com esse “tipo de gente”. Abriu um sorriso largo e tentou segurar minha mão sobre a mesa. Aproximou-se do meu rosto, fixou seus olhos nos meus e me perguntou se tinha namorado. Fui mais rápida ainda. Disse que sim, estava noiva e que ele era policial civil, membro da  Scuderie Le Cocq, amigo do Mariscot, do Sivuca e de um monte de outros policiais da pesada. O baixinho ficou lívido, retirou a mão rapidamente, a tempo de me deixar ver uma aliança reluzente em seu dedo anelar esquerdo.

Entregou-me rapidamente os documentos com um riso amarelo e me acompanhou até a porta. Na antessala, os meus me receberam apreensivos. O que ele queria, minha filha,  perguntou-me vovô, ansioso. Nada vô, queria só me paquerar… Ambos se entreolharam aliviados e ele, orgulhoso da neta, ainda saiu-se com essa: Bem, ao menos o rapaz tem bom gosto! Saudades imensas desse avô reaça que me protegia com seu amor incondicional. Saudade zero desses tempos em que machismo e misoginia eram tão naturais quanto o sorvete de manga que minha avó fazia para nos aliviar do calor enquanto assistíamos Flávio Cavalcanti na televisão.

 

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *