Era 12 de Julho de 1990, e eu seguia mergulhado na noite, numa cerimônia do Santo Daime, no Acre. Ouvindo maracas, ouvindo maracas, ouvindo maracas, e hinos e hinos e hinos.
Achei que tivessem se passado uns 20 minutos, mas quando cessou o cântico, olhei o relógio, três horas haviam escoado, sorrateiramente.
Cortaram um bolo alvo e doce. Porque era aniversário de uma anciã. Saí para o terreno escuro. Algumas figuras luziam em cigarrinhos pálidos. Tartamudeavam, dialogavam talvez em outra língua.
Aproximei-me, e alguém me avisou: “morreu o João Sem Medo, o João Saldanha, sabia?”
Não, eu não sabia, e me estarreci. Era alguém que eu planejava entrevistar, um dia qualquer, mesmo que por uma horinha.
João marcou minha infância, quando toda frase da sensatez era sussurrada com receio da roda-viva. João era comunista, e a simples menção a seu nome podia colocar em apuros o pacato cidadão.
Era briga de gaúchos, segundo ouvi uma noite, na hora do jantar, da voz bigoduda de meu pai, que folheava o Diário da Noite. Saldanha contra Médici.
Depois, alguém me contou que a família do técnico participara do levante de 1923, e que o menino subversivo transportava munição na fronteira com o Uruguai.
João esteve preso, por militar no Partidão, por defender justiças impossíveis no país da UDN eterna e da caserna infinita.
Ainda assim, foi quem produziu, na raiz, o time formidável de 1970, a melhor seleção nacional de todos os tempos.
João, para mim, era vago, assombroso e mítico. Como sobrevivera aos Anos de Chumbo? Eram perguntas que eu tinha para a entrevista que nunca se realizou.
É isso que sei… Com ele, o futebol seria mais pensado e mais responsável. Com menos ostentação. Mas acabou. O João da minha consciência esmaecida morreu num terreiro do Santo Daime, no Acre, numa noite fresca, quase fria, de Julho de 1990.