Mamamá e as manchetas

Por Renato Lombardi 

O começo da minha carreira de jornalista foi no jornal Última Hora como contínuo e depois fui trabalhar como repórter na sucursal em Santo André. Quando o jornal começou a ser pressionado pela ditadura eu fui chamado pelo meu amigo e mestre – que me ensinou o caminho das pedras – Ramão Gomes Portão para ser plantonista do Jornal Notícias Populares que fora criado por Jean Mellé, um rumeno, que também trabalhara na Última Hora como editor internacional e sabia que a UH estava destinada ao fechamendo pelos militares que odiavam o dono, Samuel Wainer, por ele ser amigo de Jango Goulart presidente deposto pelos generais.
Depois de um bom tempo como plantonista na Central de Polícia fui chamado para trabalhar na redação como repórter. Bem diferente do setorista. Não tinha a obrigação de entrar tal hora, sair tal hora. O horário era mais flexível. O ambiente numa redação, quando o grupo é unido, é sensacional. Entre as figuras diferentes daquela redação do NP, já na Barão de Limeira, no prédio colado ao da Folha de S. Paulo – o jornal tinha sido comprado pelo Octávio Frias, dono do Folhão -, estava o contínuo Guilherme que todos conheciam como Mamamá.
Negro, alto, forte, era goleiro da redação. Carioca, viera a São Paulo para encontrar um trabalho melhor, não conseguira, morava num bairro da zona leste e era vizinho de um motorista do jornal. Numa conversa de domingo, no campo de futebol de várzea, surgiu a história do desemprego e a indicação para trabalhar no NP. Guilherme, ou Mamamá, atendia além da redação a diretoria, ou melhor, o Jean Mellé.
Numa tarde, Mellé estava reunido com os editores para escolher a manchete do dia seguinte – sempre com as tragédias policiais – e havia duvida quanto a sugestão a ser selecionada. Guilherme entrou e eu pedi ao Mellé que perguntasse ao contínuo qual a que título ele mais gostava. Afinal ele era o autêntico leitor do Notícias Populares. Guilherme escolheu, todos concordaram, e no dia seguinte a manchete puxou uma vendagem de 150 mil jornais.
A partir daquele dia Guilherme era o consultado para a sugestão da “mancheta” como Mellé, em seu português horrível, se referia ao título principal da primeira página do dia seguinte. E Mamamá ficava orgulhoso quando lhe perguntavam em seu bairro o que fazia e ele dizia que colaborava muito com o jornal porque era quem escolhia as manchetes.
– Não sou jornalista, repetia, mas colaboro direto com a venda do NP.
Depois de alguns anos Guilherme decidiu que voltaria para o Rio de Janeiro. Os pais estavam doentes e deixou em seu lugar um primo, Joaquim, que logo recebeu o apelido de Sarcófago. Zicardi – João Zicardi Navajas -, editor de esportes e depois secretário do jornal, foi quem deu o apelido. Joaquim nem imaginava o significado de Sarcófago. Era todo sorriso quando o chamavam pelo apelido. Ninguém jamais se atrevera a dizer o que era Sarcófago. Zicardi tempos depois terminou o curso Rio Branco e se tornou diplomata.
Numa tarde durante uma sessão de jogo de dadinhos, que rolava , nos fundos da redação, Paula Ramos o responsável pela seção de turfe, perdeu o dinheiro que tinha e também o que pedira emprestado a colegas. Diante da gozação do Zicardi que não jogava e era contrário a jogatina, Paula decidiu dar o troco e contar ao contínuo o significado verdadeiro do apelido.
– Vou acabar com essa história do Sarcófago. Vocês vão se entender com o crioulo e parar de me encher o saco.
Joaquim tinha um metro e noventa, forte, doido por uma confusão. E não deu outra. Assim que Joaquim entrou na redação, Paula Ramos o chamou.
– Joaquim você sabe o que é Sarcófago?
E o contínuo abriu um sorriso e respondeu.
– Deve ser uma coisa legal porque todos me chamam, dão risada, e o Zé da cantina me disse que é um elogio em francês.
O Zé da cantina que ficava na entrada da redação também nem imaginava o que seria sarcófago e achava lindo. Quando Paula Ramos contou o que realmente era, Joaquim mudou o comportamento. Olhou para o fundo da redação onde se concentrava a maioria do pessoal e gritou.
– Aqui só tem filho da puta. Sarcófago é a mãe de cada um. Vou meter a mão na cara do primeiro que voltar a me chamar assim. Nem que eu perca o emprego.
Desde esse dia ninguém mais o chamou de Sarcófago. O Zé da cantina pediu mil desculpas, alegando que também não sabia, mas Joaquim não acreditou. Comeu pão na chapa durante um bom tempo sem pagar. E continuou escolhendo as manchetes do jornal até o dia em que se acidentou com uma bicicleta e se afastou do trabalho. Ficou bom e decidiu voltar para o Rio de Janeiro. Nunca mais ouvi falar do Mamamá e do Sarcófago.

 

Renato Lombardi é um experiente  jornalista, comentarista de Segurança e Justiça na TV Record, com passagens em diversos veículos de imprensa

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