Macron arrisca jogar a França nas mãos dos neofascistas

Por Luis Felipe Miguel

Macron definiu uma reforma da previdência que penaliza os trabalhadores e é rejeitada por dois terços dos franceses. Não
negociou, recusou-se a receber os sindicatos e, no fim, usou um controverso dispositivo legal que permitiu dar a proposta por aprovada sem o aval do parlamento.

A Corte Constitucional avalizou a reforma, retirando apenas alguns penduricalhos. E recusou o pedido da oposição para realização de um referendo. (Um segundo pedido seja julgado em breve, mas é improvável que o resultado seja diverso.)

Sim, o referendo seria péssimo para o presidente francês. A oposição teria meses para colher os milhões de assinaturas necessárias para colocá-lo em marcha. Depois, haveria a campanha para a votação propriamente dita. O desgaste do governo, que empurrou goela abaixo da França uma medida tão rejeitada, seria enorme.

Mas seria a maneira democrática de resolver o impasse gigantesco que a imposição da reforma causou: dando voz ao titular da soberania que é, afinal, o povo.

O caso revela como, nos regimes representativos liberais, o discurso democrático é só uma fachada. Macron afirma que a reforma é imprescindível para equilibrar as contas públicas (e a única maneira é tungar a classe trabalhadora, claro), logo tem que ser implantada.

O subtexto: o povo pode ser titular nominal da soberania, mas é incapaz de tomar decisões esclarecidas. Portanto, quem deve mandar é uma elite.

Quando a Corte Constitucional avaliza a imposição da reforma e recusa o referendo, apesar dos apelos de lideranças da sociedade civil e de intelectuais, fecha o caminho para resguardar o caráter democrático das instituições vigentes.

Embora a esquerda esteja na liderança das enormes manifestações de protesto, é provável que a grande beneficiária da crise seja a extrema-direita. A falência da democracia liberal costuma render ganhos para seu discurso reacionário vagamente antissistêmico.

Não custa lembrar que Macron também foi eleito por uma “frente ampla”. Foram os votos da esquerda que garantiram sua vitória no segundo turno, diante de Marine Le Pen.

No governo, porém, não manifestou nenhum interesse em dialogar – e se dispôs a implantar sem concessões um programa antipovo, mesmo ciente de que está arriscando, ao final de seu mandato, entregar a França nas mãos dos neofascistas.

Luis Felipe Miguel é professor de Ciências Políticas da UNB e coordenador do Grupo de Pesquisa sobre Democracia e Desigualdade

 

 

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