Com espantosa frequência, o tema retorna à baila, como ocorreu esta semana, em debate literário com amigos. Atualizo, portanto, aqui no Construir Resistência, artigo meu publicado nas redes sociais há dois anos.
Não sou do companheiro Machado um estudioso organizado, tampouco cogito de aplicar alguma epistemologia à leitura de sua vasta obra.
No entanto, há quem me pergunte, há tempo longo, se enxergo neste filho de negro com portuguesa algum interesse, mesmo que discreto, em revelar nuances da vida homoafetiva de seu tempo.
A verdade é que me estarreço com a dúvida. Sim, é óbvio que sim, e de maneira bastante cristalina, em diferentes escritos.
Apresento aqui alguns singelos exemplos, e começo pelo conto “As academias de Sião”, cujo viés fabulário parece preceder as obras do argentino Jorge Luís Borges.
O escrito trata de identidades, assim nascidas, constituídas no sinal trocado dos corpos. É a narração de uma aventura de transgêneros no universo fascinante do conhecimento.
Reproduzo abaixo trechos que alumiam o tema:
- Por que é que há homens femininos e mulheres masculinas? O que as induziu a discutir isso foi a índole do jovem rei.
Kalaphangko era virtualmente uma dama. Tudo nele respirava a mais esquisita feminilidade: tinha os olhos doces, a voz argentina, atitudes moles e obedientes e um cordial horror às armas.
- Uma das academias venceu o debate sobre o tema com a seguinte certeza: “A alma é neutra; nada tem com o contraste exterior”. Porém, Kinnara, a mais bela concubina do Sião, durante um encontro privado com rei, questionou a decisão dizendo existirem almas sexuais.
Assim como o rei era o homem feminino, Kinnara seria a mulher máscula: “Um búfalo com penas de cisne”. Depois de um beijo, Kinnara convenceu o rei a fazer que suas almas trocassem de corpo por seis meses. Cumprido o prazo, cada uma seria restituída ao corpo original.
Vale ler o conto e conhecer as conclusões machadianas. Sigamos na análise. Na escola naturalista, o cearense Adolfo Caminha (1867 – 1897) mostra de forma clara a paixão entre dois homens do mar, o negro Amaro e o branco Aleixo. “Bom-Crioulo” causaria escândalo ainda hoje.
É certo, portanto, que a homossexualidade estava perfeitamente presente na sociedade brasileira do Século 19. José Ricardo Pires de Almeida, médico higienista, relatou o que considerava antigos abusos homoafetivos no Largo do Rossio e no Campo de Sant’Ana, no Rio de Janeiro.
A elite governante imaginou que a solução fosse elevar o número de prostitutas na cidade. Assim, em 1846, com o auxílio do Barão de Moreira, cônsul português, o Brasil consumou a primeira importação de prostitutas europeias.
Pelo que se presume da história, essas mulheres encontraram clientela, ensinaram modos aos bem postados matutos da terra e ganharam discreto respeito social. As demonstrações públicas de homoafetividade, entretanto, pouco cessaram, exceto nos períodos de repressão policial violenta.
Especialmente em sua fase realista, pareceria muito improvável que Machado se furtasse a representar essas expressões da vida social.
Se você resiste na dúvida, leia o conto “Pílades e Orestes”, que narra em pormenores a relação homoerótica de Quintanilha e Gonçalves. Há convivência, carinho e muito ciúme; além de certo receio pelo julgamento da sociedade.
Em determinada passagem, o narrador revela o seguinte sobre o relacionamento dos amigos:
– A união dos dois era tal que uma senhora chamava-lhes os ‘casadinhos de fresco’ […]
E diz mais Gonçalves:
– Uma só coisa desejo, é que nos separemos, para que não se diga…
Há quem imagine que o interesse de Gonçalves fosse somente financeiro. No entanto, quando sabe da notícia do casamento do amigo, devolve o testamento que lhe fazia herdeiro da fortuna do outro.
Mas quero ousar mais, analisando um tantinho o personagem Procópio Dias, de Iaiá Garcia. Veja como foi descrito:
– As roupas, graves no corte e nas cores, eram da melhor fazenda e do mais perfeito acabado. Naquela manhã trazia uma longa sobrecasaca abotoada até metade do peito, deixando ver meio palmo de camisa, infinitamente bordada. Entre o último botão da sobrecasaca e o único colarinho, fulgia um brilhante vasto, ostensivo, escandaloso. Um dos dedos da mão esquerda ornava-se com uma soberba granada. A bengala tinha o castão de ouro lavrado, com as iniciais dele por cima, de forma gótica.
É a construção simbólica dos homossexuais da época. Dias é descrito como alguém que entende de moda e que não se poupa de enfeites. Há também a apresentação da dúvida sobre a virtude moral da figura, conforme o padrão estigmatizante da época.
Vale o trecho:
– Sua filosofia tinha dois pais: Lúculo e Salomão – não o Lúculo general, nem o Salomão piedoso, mas só a parte sensual desses dois homens, porque o eterno feminino não o dominava menos que o eterno estômago.
Em outro trecho, ao pronunciar-se sobre os obstáculos ao casamento de Procópio Dias e Iaiá Garcia, Jorge conclui:
– Naquela idade um pretendente é uma espécie de boneca; o que é preciso, a todo transe, é fazer da boneca um esposo.
Não faz tempo, reli D. Benedita, passando batido pela questão. Arriscando um baita spoiler, trata da veleidade, das artes de uma procrastinadora.
Depois, porém, encontrei um escrito de Josué de Sousa Montello, parte do “Diário do Entardecer”, de 1967, do qual pinço as anotações abaixo.
“Seria possível o que eu estava lendo? E por que, até agora, ninguém atentara para a página erótica de Machado de Assis, no livro de 1882?
Porque o que eu tinha diante de mim, espantado, era uma cena de “homossexualismo” feminino, transparente, perfeita, habilmente concatenada, sem deixar dúvida alguma quanto à sua natureza.
A página reclama leitura atenta (…). Convém relê-la, devidamente alertado, redobrando de atenção quando se juntam as duas personagens do episódio: a Dona Maria dos Anjos e a que dá nome ao conto.”
Seguem trechos da história:
“D. Benedita voltou nesse momento pelo braço de D. Maria dos Anjos.Trazia um sorriso envergonhado; pediu desculpas da interrupção, e sentou-se com a recente amiga, agradecendo-lhe o cuidado que lhe deu, pegando-lhe outra vez na mão. (…)
E declarou que não, que a outra é que era boa, um anjo, um verdadeiro anjo; palavra que ela sublinhou com o mesmo olhar namorado, não persistente e longo, mas inquieto e repetido.”
Foi Millôr Fernandes, finado em 2012, quem botou a cereja neste bolo de cogitações.
Em sua opinião, é tedioso o eterno debate nacional sobre a cornice de Bentinho. Na verdade, segundo essa avaliação, o traído é também traidor.
Seguem frases do livro, separadas pelo desenhista-humorista, conforme edição da Editora Nova Aguilar.
– Escobar veio abrindo a alma toda, desde a porta da rua até o fundo do quintal. A alma da gente, como sabes, é uma casa com janelas para todos os lados, muita luz e ar puro… Não sei o que era a minha. Mas como as portas não tinham chaves nem fechaduras, bastava empurrá-las e Escobar empurrou-as e entrou. Cá o achei dentro, cá ficou… (…)
– Ia alternando a casa e o seminário. Os padres gostavam de mim. Os rapazes também e Escobar mais que os rapazes e os padres. (…)
– Fui levá-lo à porta… Separamo-nos com muito afeto: ele, de dentro do ônibus, ainda me disse adeus, com a mão. Conservei-me à porta, a ver se, ao longe, ainda olharia para trás, mas não olhou. (…)
– Capitu viu (do alto da janela) as nossas despedidas tão rasgadas e afetuosas, e quis saber quem era que me merecia tanto.
– É o Escobar, disse eu. (…)
– Fiquei tão entusiasmado com a facilidade mental do meu amigo, que não pude deixar de abraçá-lo. Era no pátio; outros seminaristas notaram a nossa efusão: um padre que estava com eles não gostou… (…)
– Escobar também se me fez mais pegado ao coração. As nossas visitas foram-se tornando mais próximas, e as nossas conversações mais íntimas. (…)
– A amizade existe; esteve toda nas mãos com que apertei as de Escobar ao ouvir-lhe isto, e na total ausência de palavras com que ali assinei o pacto; estas vieram depois, de atropelo, afinadas pelo coração, que batia com grande força.
Se a ideia é compreender a vida presente, a natureza dos afetos e a raiz venenosa do preconceito, cabe ler mais Machado.
Nada é novo. E o pior equívoco é espantar-se com a realidade repetida. Antigamente? Antigamente, a história já se tramava neste mesmo enredo.
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