Por Cristina Serra – ICL Notícias
Devastação só pode ser explicada pela cumplicidade das autoridades
Estou em Maceió para acompanhar as consequências do maior desastre socioambiental em área urbana do mundo. Um escândalo que acompanho há tempos e que guarda inúmeras semelhanças com outras catástrofes provocadas pela mineração no Brasil, que tenho estudado e escrito a respeito.
São desastres tecnicamente diferentes, mas o pano de fundo político e institucional é o mesmo. Empresas com enorme poder econômico exploram recursos naturais de maneira predatória; põem em risco a vida das pessoas e o meio ambiente ao redor; calam as autoridades e a mídia com doações para campanhas, patrocínios etc. Políticos acumpliciados ignoram seu dever, fecham os olhos para ilegalidades e sucateiam, de propósito, os órgãos públicos que deveriam fiscalizar as empresas.
A sal-gema começou a ser explorada em Maceió na década de 1970 pela empresa com o mesmo nome do minério, mas escrita de forma diferente: Salgema. Depois de diversas mudanças societárias, em 2002 a operação foi absorvida pela petroquímica Braskem, pertencente à Odebrecht, hoje Novonor, a principal acionista (o grupo mudou de nome depois da Operação Lava Jato). A segunda maior acionista é a Petrobras.
A exploração de sal-gema foi um projeto de interesse da ditadura, enfiado goela abaixo dos maceioenses, apesar da oposição de boa parte da sociedade civil e de vários alertas de ambientalistas. O mais conhecido deles é o ecólogo alagoano José Geraldo Marques, pós-doutorado em Meio Ambiente pela Unicamp. Nos anos 1970, a convite do então governador Divaldo Suruagy, Marques ocupou a Secretaria de Controle da Poluição de Alagoas e alertou para a possibilidade de ocorrerem “subsidências” (afundamentos de solo) na região. Não foi ouvido, recebeu ameaças de morte e passou um bom tempo fora de Alagoas.
Enquanto isso, a Salgema foi instalada e fez o que bem entendeu. A sucessora Braskem manteve o modus operandi. O diâmetro das minas ultrapassou o padrão recomendado pela boa engenharia; a distância entre elas não foi respeitada. Cavernas gigantes foram escavadas sob os pés da população, alheia ao perigo que corria.
A exploração desenfreada de 35 minas preparou o cenário para o desastre que atinge cinco bairros e arredores. Há relatos de rachaduras em casas e prédios desde, pelo menos, 2010. Em março de 2018, um tremor abriu crateras em ruas e espalhou rachaduras nas moradias. Cinco bairros entraram na área de risco: Pinheiro, Bebedouro, Bom Parto, Mutange e Farol.
Cerca de 55 mil pessoas (14 mil famílias) começaram a ser deslocadas. Com medo de permanecer na área de risco, os moradores acabaram aceitando acordos com a Braskem, muitos sob protesto por considerarem as indenizações insuficientes. Além do mais, ao firmar o acordo, cada morador tinha que transferir a propriedade do imóvel para a Braskem.
Hoje, grande parte desses imóveis foi demolida e outra parte está em ruínas, o que dá um aspecto de “Chernobyl alagoana” a essa parte de Maceió. Houve um enorme impacto na saúde mental dos atingidos, inclusive com o registro de suicídios relacionados ao desastre. O comércio e uma infinidade de negócios locais quebraram por falta de clientela e trabalhadores perderam seus empregos.
De 2019 para cá, a empresa começou o processo de estabilização das minas. Um trabalho lento e complexo, com risco de provocar novos tremores e afundamentos do solo. Foi o que aconteceu durante o mês de novembro e que culminou com o alerta de colapso abrupto da mina 18, na semana passada. Parece que só então autoridades locais e federais e a mídia corporativa despertaram de um longo torpor. “Descobriram” da noite para o dia o crime da Braskem em Maceió.
Diante do risco de colapso, a justiça autorizou a retirada de famílias remanescentes sob coação policial e ameaça de prisão. São famílias que resistem até hoje a fechar os acordos por considerar injustos os valores oferecidos pela empresa.
As pessoas tiveram que deixar suas casas de madrugada, levando a roupa do corpo, e as residências foram lacradas. Foi mais uma violência numa sequência de arbitrariedades, corroboradas pelo poder público.
O que estou vendo em Maceió só reforça o que tenho dito desde o rompimento da barragem de Fundão, em Mariana, em 2015. A mineração no Brasil é uma máquina de moer gente.
Cristina Serra é paraense de Belém, jornalista e escritora. Formou-se em jornalismo na Universidade Federal Fluminense. Trabalhou nos jornais Resistência, Leia Livros, Jornal do Brasil, Folha de S. Paulo, revista Veja e Rede Globo. Tem quatro livros publicados. Atualmente, é comentarista do ICL Notícias
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