Lula tem razão: a democracia é mesmo relativa

Por Breno Altman

Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

Universalização do conceito de democracia é aleijão histórico, situado entre arsenal ideológico da hegemonia burguesa e rendição teórica ao pensamento liberal

A declaração do presidente Lula, sobre a relatividade da democracia, provocou urticárias entre liberais de direita e de esquerda.

Se fosse absoluta, a democracia seria um regime modelar. Ou seja, haveria um modelo padrão – a democracia ocidental e liberal – que serviria de métrica para todas as nações. Todos os sistemas políticos estranhos a esse modelo seriam, por óbvio, antidemocráticos.

Mas essa universalização do conceito de democracia é somente um aleijão histórico, situado entre o arsenal ideológico da hegemonia burguesa e a rendição teórica de setores da esquerda à pressão exercida pelo pensamento liberal.

Não se trata apenas de situar a democracia no terreno da luta de classes, o que pressupõe qualificá-la como burguesa ou socialista, para identificar a quais objetivos e interesses serve determinado regime político.

Tampouco é suficiente contextualizar os diferentes sistemas, para diferir os que estão integrados ao sistema imperialista, livres de ameaças e sanções externas, daqueles que estão submetidos a toda sorte de agressões e bloqueios.

O truque principal do discurso liberal é a confusão proposital entre democracia e liberdade, como se a essência da questão democrática estivesse nos direitos políticos formais.

Liberdade e democracia
Democracia é o poder do povo. Diz respeito às condições econômicas, sociais, educacionais e organizacionais para que a maioria possa governar uma nação. Quanto maiores as liberdades que esse sistema puder usufruir, melhor. Mas não é a dimensão da liberdade que determina a existência ou não de um regime substantivamente democrático.

Provavelmente não há país que goze de maiores liberdades formais que os Estados Unidos, a meca da democracia burguesa. Todo mundo, por exemplo, tem direito de formar partidos para disputar o governo ou de fundar meios de comunicação para influenciar a opinião pública. Mas não passa de uma garantia formal: apenas quem acumula enormes recursos financeiros é capaz de exercer efetivamente esse direito.

Embora ainda persista uma certa cultura comunitária, de participação social nas pequenas e médias cidades, a política norte-americana é essencialmente determinada pela plutocracia, isso é, a ditadura do dinheiro. Está circunscrita a instituições controladas pelo capital, como o parlamento e o Poder Executivo, com a imensa maioria da população excluída de qualquer processo decisório. A política é quase totalmente profissionalizada, com bilhões de dólares sendo necessários para realmente lutar pela direção do Estado.

Não é diferente a situação na Europa ou na América Latina, incluindo o Brasil. A democracia liberal oferece praticamente todos os direitos formais, em condições normais, mas apenas a burguesia pode integralmente acessá-los.

Truque principal do discurso liberal é confusão proposital entre democracia e liberdade
Ainda por cima, nenhum desses Estados burgueses é ameaçado, desde fora, por punições e sabotagens caso insistam em manter sistemas plutocráticos.

Olhemos agora para Cuba, apenas como exemplo. Não há qualquer dúvida, em uma leitura honesta, que há menos liberdade na ilha socialista do que no gigantesco vizinho imperialista. Até porque o bloqueio estabelecido pelos EUA, a interferência estrangeira e o risco de agressão obrigam a um permanente estado de guerra, no qual obviamente liberdades são suprimidas ou controladas.

Cuba é uma ditadura?
Os cubanos tomam decisões coletivas sobre os rumos do país de forma permanente, através dos instrumentos de poder popular, que vão dos quarteirões ao âmbito nacional, em debates e votações que chegam a envolver, diretamente, mais de metade da população, como foram os casos da reforma constitucional e do novo código de família.

Não se trata de uma participação limitada ao voto em referendos, mas de discussões bairro-a-bairro, protegidas de qualquer influência organizada por lobbies financeiros, nas quais milhões de pessoas estão envolvidas com o objetivo de apresentar propostas e emendas antes que determinado projeto vá à votação popular.

Esse método reflete-se também sobre a parte representativa da democracia: a esmagadora maioria dos parlamentares exerce suas funções sem remuneração, as candidaturas são definidas pelas organizações sociais (e não pelo partido comunista) e as disputas são realizadas em absoluta igualdade de armas, pois somente podem ser usados os espaços estabelecidos pelo Estado.

A democracia cubana não é liberal. Tampouco a chinesa ou a vietnamita. Sua coluna vertebral é a soberania popular, exercida de forma igualitária pelos cidadãos e através de instrumentos preponderantemente diretos. Os direitos políticos formais têm menos importância do que nos países capitalistas. Um dos motivos é porque revoluções vitoriosas não costumam oferecer, mesmo que hipocritamente, possibilidades de restauração do poder das classes derrotadas, mas que ainda possuem muitos recursos econômicos e aliados internacionais dispostos a tudo.

A democracia norte-americana, por sua vez, é o mito fundacional da república liberal. Quase todos os direitos políticos formais estão garantidos. Mas isso não tem qualquer relevância para a ditadura do capital, que controla todas as esferas da sociedade e do Estado, legitimada por eleições que dependem de fortunas incalculáveis, em um sistema no qual o dinheiro é a força motriz e excludente, condenando a maioria do povo a um papel passivo, dominado.

Não restam dúvidas de que o presidente Lula tem razão: a democracia é mesmo relativa.

 

Breno Altman é jornalista, publisher e fundador de Opera Mundi

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