Por Simão Zygband
Não é segredo para ninguém que Lula era o único candidato com capacidade e estatura para derrotar nas urnas o extremista Jair Bolsonaro. Mas para isso teve que construir uma frente ampla tendo como vice um adversário histórico, o ex-governador de São Paulo, Geraldo Alckmin que sinalizou com bastante clareza a amplitude das concessões que o PT, como cabeça de chapa, poderia fazer.
Todo mundo sabe também que Lula sempre foi um conciliador, um moderado, concebido na Igreja Católica e no Movimento Sindical. É um revolucionário dentro da sua concepção da luta política, com raízes no Partidão, mas bem distante de grupos oriundos da luta armada que existiram antigamente no PT, partido que o ex-metalúrgico criou, juntando moderados aos radicais.
Estes conceitos foram aos poucos se tornando obsoletos e tomaram um banho de realidade: o muro de Berlim caiu, a União Soviética se desfez, a China tornou-se um complexo capitalismo de Estado e até a rebelde Cuba teve que fazer suas concessões para conseguir um respiro de sobrevivência.
Lula, efetivamente, foi o real ideólogo do Socialismo Moreno, amplamente preconizado por Leonel Brizola e Darcy Ribeiro. Realizou dois mandatos de governo com justiça social, mas sem mexer fortemente nas estruturas conservadoras do sistema. Baseou-se praticamente na teoria de Delfim Neto, que previa o “crescimento do bolo pra poder reparti-lo”. Nas gestões do petista, todos os segmentos ganharam: os mais pobre puderam comer ao menos três refeições por dia e os mais ricos ficaram mais ricos. Não houve nenhuma ruptura institucional.
Agora, reeleito pela terceira vez presidente, Lula de depara com um cenário bem mais desafiador do que nas vezes anteriores. Tem que governar internamente com os ministros da Frente Ampla que ele mesmo construiu e, ainda por cima, tentar contornar a extrema desvantagem que possui no Congresso Nacional. Um quadro para lá de indigesto.
Para passar com folga o PL do Arcabouço Fiscal, onde o governo obteve uma folgada maioria, Lula teve que fazer uma série de concessões no texto original. Contou com votos votos contrários da oposição bolsonarista, do PSOL e com defecções na Rede. Mais de 20 deputados do PT votaram favoráveis à matéria, mas fizeram declaração de voto discordando do conteúdo do projeto.
Os deputados conservadores estão conseguindo esmagar no Congresso as pautas mais progressistas que o governo Lula poderia ter. A Câmara dos Deputados aprovou matérias que significam o desmonte das políticas públicas e dos sistemas de proteção do meio ambiente, água, florestas e dos povos originários. Duas das decisões tomadas na Casa afetam diretamente os direitos indígenas e os poucos avanços da pauta ambiental e indígena que houve nestes poucos meses do governo Lula.
O relatório do deputado Isnaldo Bulhões Jr (MDB-AL) para a MP 1158 visa organizar os ministérios do atual governo e retira do Ministério dos Povos Indígenas a competência para tratar das demarcações dos territórios indígenas e passando a atribuição ao Ministério da Justiça; assim como transfere o Cadastro Ambiental Rural (CAR) do Ministério do Meio Ambiente para o Ministério da Agricultura e Pecuária e Abastecimento (MAPA), impedindo que haja controle ambiental do CAR, dentre outras medidas que visam o esvaziamento dos órgãos de proteção ambiental.
Aprofundando a crise e os ataques aos direitos indígenas, a Câmara também resgatou o PL 490 que estava congelado há dois anos. A casa aprovou o requerimento de urgência para votar o projeto que representa o genocídio dos povos indígenas do Brasil ao incluir na constituição a tese do Marco Temporal. Este projeto considera a data de 1989 como marco para o reconhecimento da ocupação dos territórios indígenas, desrespeitando o direito originário à terra.
Ambas as matérias desagradaram as ministras Sônia Guajajara e Marina Silva que se “sentiram traídas” pelo presidente Lula. Diante do quadro, em sua coluna desta quinta-feira, 25, na Folha de S.Paulo, Mônica Bergamo adianta que parte do “núcleo duro” do governo Lula “já jogou a toalha” diante do poder do presidente da Câmara Arthur Lira. “O presidente precisa entregar diversos anéis para permanecer com os dedos”, diz a coluna.
Desconfio que esta encruzilhada diz muito sobre o futuro do país. Eu, particularmente, não creio que Lula pretenda enfrentar o Centrão, mas não terá outra escapatória. Se der os anéis, como disse a Mônica Bergamo, corre o risco de perder também os dedos. A Centro-esquerda terá que se organizar para enfrentar os ruralistas. Ainda tem, de tabela, a CPI do MST, tendo como relator o “passa boiada” Ricardo Salles.
Vamos ver como Lula sai desta sinuca. Mas se espera que não dê tudo o que os conservadores querem de mão beijada, que não corte apenas na carne dos aliados. Chegou a hora da verdade. De prender os financiadores do golpe, boa parte encastelada no Congresso Nacional. Não mais funciona o jogo da retórica. É necessária ação.
É hora de ir pra cima, presidente. Não podemos recuar!