Por Virgilio Almansur
Love? Love always… Assim termina, na fala de uma das vítimas de “O Golpista do Tinder”, o roteiro para o documentário de uma “psicopatologia”; aquela de um cotidiano capetalista. Isso mesmo: são as fímbrias e brumas de um exercício para o capital, este sim, sequestrado para uma pirâmide que outrora — ainda há — capturava você nas calçadas do Leblon.
Se em Goethe, Fausto responde a Wagner quando este diz: “Também já tive outrora ardentes ilusões! Jamais senti porém as tuas aflições. Ando farto de ver florestas, campos, vinhas… Nem invejo do pássaro o se librar na altura. Sinto maior prazer com uma boa leitura… Passar de livro a livro, a sugar tantas linhas, nas noites hibernais amenas e agradáveis. Eflúvio delicioso o corpo contagia. Desdobra um pergaminho, oh que horas suaves! Desce o céu sobre ti, te envolve e te inebria!”, responde-o com certa bravura (a faustiana…): “Falas assim porque só tens uma aflição: não procuras jamais as outras desvendar! No meu corpo há duas almas em competição, anseia cada qual da outra se apartar. Uma rude me arrasta aos prazeres da terra, e se apega a este mundo, anseios redobrados… Outra ascende nos ares; nos espaços erra… Aspira à vida eterna e a seus antepassados”.
A sedução ofertada carrega o fetiche na sua integralidade. Em tempo de links, o percurso do dinheiro com rapidez digital, impõe-nos câimbras quando ainda nem saímos de nossa morada analógica. Existe ali, nos relatos, algo que sobrevém pelo impulso, um certo drive em busca de um objeto que se lhe apresenta(m) num mundo virtual. O questionamento que envolve o caráter fetichista do capital, se inicia numa pergunta de Marx: “E a economia moderna que, sobranceira, sorri desdenhosa para aquelas ilusões, não manifesta evidente fetichismo quando trata do capital?”
A entrega da vontade e da própria consciência do sujeito capetalista ao capital, personifica o capital. Está ali num inferno dantesco de difícil solução pois, encarnado, “valorizando-se” o valor, personificando um atributo, torna-se processualmente uma figura central, de autonomia ímpar, um sujeito automatizado e rigorosamente autônomo. Fausto tem razão! E o nosso personagem, Simon Leviev carrega, numa realidade fantástica, o que nenhum ator conseguiria.
A única concretude está no dinheiro, dentro de uma zona do euro. Quando este se concretiza em papéis, sente-se a distância em que a vítima se encontra. Seu projeto é ser reconhecida, sentir que é querida e pode querer, não importando que tudo se dê sob ruídos techs de péssimo mau gosto e escancaradas figuras do basfond de um leste decadente.
Na esperteza do golpista reside um componente serial-killer. Este jamais decairá de seus interesses marcadamente compulsivos. A distância entre ele e a de um batedor de carteiras, é mínima. O gozo implícito traduz a continuidade que a legislação israelense lhe aplicou: 15 meses de reclusão e cumpriu cinco — já tendo voltado ao Tinder e já se vestindo nos trinques versaces e gucci da vida (sem esquecer os rolex falsos).
O filmete documentário oferece-nos uma lição de libido, essa energia incontrastável que sempre busca ressignificados. Tudo aquilo que Leviev oferta é o nada, mas um nada mais consequente e aproximado ao belo e túrgido seio dadivoso — mas que também seca!
Quando se pensa nessa energia, pensa-se numa referência íntima da sexualidade, esta secção imaginária como forma de satisfação de estímulos desde as mais primitivas necessidades até aos desejos considerados sublimes. Libido é, pois, freudianamente, a energia dirigida aos objetos de nossos desejos. Esse esforço de busca na relação com um objeto, não está definido de pronto. Sua emergência carrega algo sob interesse da própria espécie: a sobrevivência, a qual consideramos como autoconservação.
O documentário consegue nos apresentar a teoria da libido na sua vertente mais dinâmica, onde todos os envolvidos estão reféns, ou seja, numa economia dos afetos que pululam sob a vertente prazerosa-desprazerosa e o princípio de uma realidade que se impõe trazendo fissuras e feridas narcísicas desoladoras.
Estava num café há pouco e ouvi duas madames inconformadas. O assunto era o documentário no streaming da Netflix: “… Quê nojo!” Mas uma outra se compadece e afirma: “Como somos trouxas!” E há ainda um outsider de outra mesa a assentir com a cabeça revelando tão somente o quanto “a carne é fraca…”, pois ninguém resistiria aos estímulos concentrados num ícone “carregando jatinhos, rollsroyces, ferraris, hotéis sete estrelas, champagnes e caviar…”.
Estamos e entramos no universo do documentário, gerando certa antipatia ao golpista, inveja primeva mesclada a um non sense pela caracterização blasé de um sujeito sem qualquer sexappeal, enxovalhado por escamas da moda sob companhia de um armário todo tatuado fazendo crer que ali esteja sua escolha. O sujeito parece ter sobrevivido num saara marroquino qualquer e delimita uma vida aérea sem propósitos; a não ser o de insuflar sua economia narcísica, que quando desafiada repercute-se em ameaças àquelas que não o suprem.
Ali está um jogo sui generis, em que o significado econômico começa a denotar. Aparece para nós, na última namorada do golpista, o semblante sadomasoquista em jogo. Ali se concretiza um problema econômico: o problema econômico do masoquismo, origem inconteste da trama banal.
Este texto da economia psíquica, freudiano por excelência, comina aspectos interessantes da sexualidade infantil (aqui vejo infantil, que é da ordem sexual, desnecessário, quase uma redundância), com suas rebuscadas perversidades, trazendo-nos a clareza de uma noção cara à psicanálise onde a neurose passa a ser o negativo da perversão. Negativo este em busca de revelação.
É nesse contexto que a direção de Felicity Morris se mostra competente. Revela o avesso do avesso, apesar de uma tônica criminal que a tal libido dissolve. Passar-se por magnata do ramo de diamantes, num cenário com pixulecos sub-urbanos, conquistando mulheres (não só, com toda certeza…), “roubando-lhe” milhões, eis que chega a vingança perturbando a vida coesa que o rato e as gatas nos oferecem.
Haverá pois um nirvana, princípio este que entendo nas duas prisões cumpridas pelo golpista — e que teve plateia golpista… A libido em jogo requer certa inflexão; energia pede reparação, recolhimento. Algo pulsante em direção à morte, um estatismo de inércia reconduzente, uma vez que o “show não pode cessar!”
É nela, vingança, que divisamos o sentido perverso nas engrenagens ditas amorosas e então desconfiamos da matriz que se refestela na publicidade: o site de relacionamentos Tinder. Acabamos envoltos num belo comercial no gênero Tony Scott, morto prematuramente, que nos trouxe filmes de um dinamismo oco, porém eficientes na condução temática, cuja superficialidade não nos permite perceber que por duas horas você foi dominado subliminarmente.
O gozo transpôs com certeza a quarta parede, improcedente numa análise fílmica, mas que pede alguma verossimilhança que tangencia nossas experiências insatisfatórias e as buscas de satisfação para o desenrolar vital. Está tudo ali… O mote de uma vendetta no sorriso sardônico da última vítima, expõe os gracejos de outro gozo — deslocado! —, na venda das roupas do ardiloso que cai num ardil até sua saída de cena momentaneamente. Leviev precisa recompor-se. Sua disposição a um superego inexiste internamente, mas terá que buscá-lo atrás das grades.
O “traído” agora diz que quer processar a Netflix. Nesse jogo, pouco choro, muito sorriso e um rancor quase esmaecido… Sabe que conta com um beneplácito: não somos nada originais! Somos clones de nós mesmos…
Narcisismos feridos, o resultado é o estardalhaço injurioso. Ocorre que somos perdulários com o afeto naquilo que pleiteamos pela via de um economismo energético, simulando, fabulando, escondendo, reprimindo e mantendo sob recalque aquela cobrança perdida no tempo.
Vejam: falei em cobrança! E a economia insiste em nos avisar que não é peça entre mocinhos e bandidos. Essa estrutura traz elementos perversos, aqueles bandidinhos que percorrem nossos ombros com tridentes minúsculos, mas que pinicam…
O grande desafio, para nós olheiros desse drama contemporâneo, é encontrar arrazoados que nos permitam entender Eros e Tánatos na configuração daquilo que relacionamentos, sob o império de links, produzem. Percebe-se que é instigante lançar-se numa aventura quase às cegas, mais ainda pela velocidade como se dá. O falso magnata induz, num pequeno papo, carregar de imediato a pretendente que vai para sua casa, arruma as malas e viaja em “seu” jatinho.
Uma amiga perguntar-lhe-á: “… Você não teme estar sendo sequestrada?” Entre risos amarelos, lá vai a freguesa tangenciar seu erotismo carregado de tánatos sem o que a báscula do tão almejado amor não imprescinde. Antes do próprio instinto, a regressão — carregada de elementos que que tão somente aparecerão num descuido que as relações oferecem (links).
A plêiade visual captada pelas câmeras de celulares, invoca algo de feitio buliçoso naqueles rapazes envolvidos no negócio punguista. É a turma do Bolinha “sexuando e secçando”, numa exposição frívola, porém autêntica, da condição perverso-polimorfa que a todos contamina. Mesmo os jornalistas cairão no jogo especular rasteiro ao promover certo voyeurismo.
Leviev sabe que só pode contar com a mãe, uma iídiche mama que recebe cartas e cartas de cobranças em sua porta e que parece abraçá-lo na condição de alteridade que deixou de ser Shimon Hayut e adotou o Simon Leviev. Basta! O pai postiço talvez seja mesmo um magnata dos diamantes, cujas fotos carregam Leviev por photoshopfix e daí seu aceno em busca do pai na idenficação de poder.
Vítimas que se entrelaçam, todos pagam um quantum para estarem, para se identificarem, sorverem alimentos fundamentais para se sentirem existentes. Há muito mais além do princípio prazeroso. Muito mais! O econômico masoquismo tende inicialmente machucar- nos; primariamente entrelaça o drive mortal (energético, pulsional) à libido — fazendo do próprio sujeito lugar de assento. De início, toda a agressividade não encontrou exterioridade e se instalou em nós mesmos.
Nesse jogo podemos intuir que após desgaste pela insuflação de dor ao outro, essa descarga venha, retirada dali, para se alojar em si mesmo. Leviev faz essa trama num momento ainda preso às implicações pré-edípicas. Suas vítimas também carregam esse condão anticivilizatório e todo(a)s são, em maior ou menor proporção, sequazes edípicos.
No interjogo de nossas existências primitivas, tendemos a recalcar as dores que serão revividas sob outra clave em dias vindouros. Daí sermos reféns de certo masoquismo por necessária economia psíquica. Mas o balão estourará… Leviev busca uma figura perdida e quer que essas “mamães” injetem grana quando submetido aos martírios de subinvestimentos sentidos. A presença materna ofuscou a figura do pai?
Ao ceder as roupas para que uma das namoradas, vinculada à moda, possa fazer dinheiro com as vendas, a insistência da direção cria uma espécie de figura materna resoluta — que passa toda a roupa do meninão para então levá-las aos cabides e vendê-las. Em busca do tempo perdido, em busca permanente daquela ainda mãe judia.
A função libidinal procura tornar inofensiva a pulsão tanática, destruidora, desintegradora (o organismo, na fantasia de morte, é desintegração!). Nossa disposição perversa é quase inata. Falei acima em ressignificações e a perversidade polimórfica está no centro de nossas novelas e dramas pessoais.
Se o masoquismo, até por definição, se insere na disposição passiva, assim mesmo, como todas as atitudes passivas frente ao objeto sexual, a dor será mantida enquanto eu não buscar o móvel que me leve ao objeto e consiga permitir, teclando, sobreviver sadicamente, razoabilidade violenta de que dispuseram as tais vítimas para irem em busca do objeto sexual facilitado pelo site Tinder (relação-link-relacionamento).
Há dor de um lado e de outro da telinha do celular. Na interface saomasoquista, temos a convicção de que há games e games que acabam por promover o jogo das empulhações e humilhações. Uma dor pode ser física e anímica. Está contemplada nessa economia que cobra, também, anímica e fisicamente.
A dificuldade teórica a embasar esse docudrama, se me permitem, e no que pertinem esses investimentos (olha aí a economia, o negócio, a cobrança), está no sofrimento que a noção penal quer exacerbar e na patologia que se quer imputar. Longe dessas atoleimadas noções, implicaremos tão somente os componentes masoquistas e seu duplo, o sadismo, na composição da sexualidade.
O que aquelas mulheres e o golpista promovem, é a determinação de uma autoconservação como meta ou objeto certeiro: o seio-provedor, quase tábula rasa, mas que na sexualidade, não havendo certezas, há fruição, há distribuição libidinal. Se tomarmos os movimentos na busca do prazer ou pelo menos com alguma satisfação reinante, teremos muito mais respostas.
Nenhum objeto está, na origem, vinculado à pulsão; ele é variável… Somente a capacidade de satisfazê-la (a pulsão, o drive, a energia posta em ação) é que dá liga (link). Essas mulheres… Descobriram, será, que só há um sexo e elas patinam na castração? Só há a pré-tensão masculino-sexual?
Respostas para a redação daqui mesmo, nos comentários… (rs). Trama ou tramóia, nosso Código Civil contempla o casamento como um negócio. Negócio jurídico. Outrossim, dor e desprazer parecem não mais serem alertas para que não soçobremos. Há um indicativo às vivências numa corda bamba: as ações e energias postas em curso, enquanto tanáticas (novamente a dualidade dor-prazer), estão muito, mas muito além do princípio prazeroso. Assistam e confirmem.
Enjoy
Virgilio Almansur é médico, advogado e escritor.