Por Sonia Castro Lopes
Censura e destruição de obras literárias são eventos processados durante regimes de exceção. Parece que estamos vivendo mais um momento de obscurantismo com a notícia de que o presidente da Fundação Cultural Palmares, Sérgio Camargo, divulgou na última quinta feira (10) um relatório sobre as obras que deveriam ser banidas do acervo bibliográfico da instituição. Obras que devem ser ‘doadas’ por conterem conteúdos impróprios, tais como sexualização de crianças, questões de gênero, apologia ao banditismo e ao marxismo.
O episódio nos faz recordar momentos da história em que houve censura e índex dos livros proibidos por serem ‘perigosos’ à igreja, ao sistema político, à moral e bons costumes. Criado pela Igreja Católica diante da invenção da imprensa e da Reforma Protestante, a primeira edição do Index Librorum Prohibitorum (1559) censurou 550 obras, sendo que a última, em 1948, chegou a condenar quatro mil títulos. Autores de obras clássicas como Dumas, Flaubert, Darwin, Montesquieu, Descartes, Hobbes, entre outros, já constaram do Index, que somente em 1966 foi extinto pelo papa Paulo VI. Ainda hoje autoridades do Vaticano não recomendam a leitura de certas publicações como, por exemplo, Código da Vinci e Harry Potter.
No Brasil, durante a ditadura do Estado Novo varguista (1937-45), o Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP) sob a direção de Lourival Fontes – nosso “Goebbels tupiniquim” – centralizou e coordenou a comunicação social. Nesse projeto autoritário, a imprensa e o rádio foram os meios mais utilizados devido a sua grande penetração e alcance público. O controle ideológico da população pelo DIP se fez sentir na produção de bens culturais ao editar uma série extensa de livros, cartazes, revistas, noticiário jornalístico, além de filmes e programas de rádio. Livros proibidos não podiam receber crítica literária nem simples propaganda nos jornais. Bibliotecas de universidades e escolas eram vasculhadas para que dali fossem retiradas obras que constituíssem qualquer ameaça ao regime.
Atos semelhantes ocorreram durante a ditadura civil-militar que se abateu sobre o Brasil entre 1964 e 1985. A lista de livros censurados por serem considerados “subversivos”, “perigosos” ou “imorais” consta do Decreto n. 1.077/70 e encontra-se publicada em teses e dissertações defendidas no meio acadêmico (1). Autoritarismo, socialismo, comunismo, esquerdismo, experiências de guerrilha urbana, movimento estudantil, marxismo, tortura, educação em Cuba e feminismo foram alguns temas censurados. Dentre os autores proibidos destacam-se Louis Althusser, Fidel Castro, Che Guevara, Lenin, Leon Trotski, Mao, Tsé-Tung. Além das publicações estrangeiras, sobretudo as de temática social e política, cerca de 140 livros de autores brasileiros foram oficialmente vetados pelo Estado durante o período. Entre eles, constam os nomes de Érico Veríssimo, Jorge Amado, Darcy Ribeiro, Rubem Fonseca, Caio Prado Jr, Celso Furtado, Dalton Trevisan, Maria da Conceição Tavares, Rose Marie Muraro, Fernando Henrique Cardoso e José Serra.
Para os novos censores da Fundação Palmares, a justificativa para “doar” os livros é a de que não haverá filtro ideológico e que só serão retiradas as obras que fujam à ‘temática negra’. Por si só o termo já revela incorreção, pois a ‘questão negra’ trata de um problema social e não de uma ‘temática’, como observa o historiador Fernando Baldraia, editor de diversidade da Companhia das Letras, em entrevista ao jornal O Globo (12-6-21, Segundo Caderno, p. 2). Porém, a negação do viés ideológico não se sustenta na medida em que constam do relatório de 74 páginas o livro A dominação marxista na Fundação Cultural Palmares, além de inúmeras obras justificadas como ‘vitimizadoras’ do negro e outras que, segundo a comissão, utilizam o negro como ‘massa de manobra.’
Os critérios de avaliação são estabelecidos de acordo com a interpretação de uma comissão suspeita por ser presidida pelo senhor Marcos Frenette, de quem só se sabe que foi assessor de Roberto Alvim, o ex-secretário especial da cultura que citou trechos de uma fala do ministro da propaganda de Hitler, Joseph Goebbels, em pronunciamento oficial e, após inúmeras críticas, acabou deixando o cargo em janeiro do ano passado.
Com esse expurgo, metade da biblioteca da Fundação Palmares (cerca de 5 mil títulos) foi condenada por uma comissão notadamente fascista. Clássicos como Dicionário do folclore brasileiro de Luís Câmara Cascudo e Bandidos de Eric Hobsbawm são exemplos de obras condenadas sob a justificativa de estarem com ortografia desatualizada, caso da primeira, ou por fazerem apologia ao banditismo, caso da segunda. Revelando total ignorância, a atitude do Sr. Sérgio Camargo, responsável pela instituição, foi combatida por intelectuais e escritores como mais uma medida arbitrária imposta pelo atual governo que tenta recontar nossa história de forma enviesada e reacionária. Não sabemos se, de fato, os livros subtraídos da biblioteca serão ‘doados’ como afirma o presidente da Fundação. Não me admira que sejam queimados em praça pública como já fizeram os nazistas em 1933 para promover uma ‘limpeza’ na literatura alemã de escritores considerados ‘inconvenientes’ ao regime.
Nota da autora
(1) Ver a respeito Sandra REIMÃO. Repressão e Resistência: censura a livros na ditadura militar (2011). Tese de livre docência publicada pela Edusp/Fapesp. Ver ainda Mercedes OTERO. A lista de livros proibidos pelo Ministério da Justiça (tese doutorado defendida na UFPE, 2003) e a dissertação de mestrado de Kelly LIMA Onde estão os livros censurados? Apresentada à UFF em 2016.
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Tempos de obscurantismo como não esperaríamos viver nesse início de terceiro milênio. Mas, como bem disse o Quintana, esses que estão aí atravancando o nosso caminho um dia passarão.
E a nossa esperança, Vidomar. Vai passar…