Construir Resistência
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… Lindos olhos azuis!

EDUCAÇÃO

Por Alexandre J. Chan-Vianna

Eu gostaria de conversar sobre elogios. Por simpatia ou bondade, estamos sempre dispostos a elogiar com uma palavra que desperte bons sentimentos no outro ou que expresse nossa emoção diante de uma dádiva. Quanto mais se tratar de crianças, mais afloram esses sentimentos em consonância com a ingenuidade e pureza infantil e mais espontâneos nos permitimos expressar. Guardadas as emoções, convido a refletirmos os efeitos do elogio nas interações sociais do cotidiano.

Os códigos de convivência com os quais fomos socializados – nem sempre conscientes – orientam a mensagem que queremos passar, seja de aproximação ou repulsa em relação ao outro. O ritual de interação face-a-face implica gestos de cumprimentos, palavras de introdução, feição do rosto – alegre ou ríspida – do primeiro olhar e em diante, tom de voz, posição das mãos, braços e ombros, forma de apresentar o tema em pauta e tudo o mais que envolve essa cena vulgar.

Dentre outros tipos, o “elogio sincero” funciona para o ator social como uma amálgama poderosa dessa encenação. De modo mais ou menos racional, encontramos algo passível de bom feedback para atuar com textos e gestos agradáveis de estima e valorização do outro, de quem esperamos recíproca. Quanto maior for a plateia que assiste essa tática melhor desempenho encontrará entre os atores que a encenam.

No entanto, aquilo que nos é naturalizado como um ato de cordialidade e sentimentos sinceros, de bem querer, pode nutrir efeitos adversos ao propósito original. Assim, apresento a partir daqui exemplos que podem ilustrar o fato para que possamos refletir sobre as consequências pedagógicas do elogio.

Por mais de uma vez presenciei profissionais da escola elogiarem meu filho em razão da cor azul de seus olhos. Já seria suficiente, considerando o ambiente escolar, que a óbvia estética colonizada de beleza fosse tema de reflexividade e cuidado desses profissionais, mas o fato é ainda mais intrincado em consequências. Tive a oportunidade, confesso perplexo, de que ele recebeu parecidos elogios em terras onde quase todos os olhos eram igualmente azuis, inclusive de quem o elogiou. No meu inevitável questionamento recebi a resposta de que não se tratava apenas da cor, mas do tamanho, da expressividade e de uma “forma profunda com um sorriso no olhar”. Os elogios daqui, diferentemente dos de lá, se reduzem tão somente à cor de sua íris.

Não há dúvidas que meu filho recebeu uma dádiva. Um excelente cartão de visitas que lhe abrirá portas. No entanto, ele passa a conviver com uma espécie de empecilho embaçador da possibilidade de receber outros elogios – e críticas – de outras tantas características que possui, sejam elas da própria aparência ou de atitudes. Como em outro exemplo, quando numa aula de natação se esforçava para cumprir desafio de atravessar a piscina. Foram dias de luta vendo os demais conseguirem, recebendo glórias do professor e ele não. Até chegar o dia que de tanto se esforçar e uma inventiva técnica de submergir nas últimas braçadas alcançou o feito. Ao chegar no professor, exausto, mas com a cabeça para fora da água aguardando o mais alto prêmio para uma criança que responde uma expectativa, escuta: “oh, não quer trocar esses olhos comigo não?”.

O elogio – frequente, repetido, rotineiro, único – da cor dos olhos o resume a uma estética marcada com determinados valores e comportamentos distintos em nossa sociedade. Os outros atributos que gostaria de apresentar em suas cenas cotidianas, estarão refém da imposição dessa salvaguarda, impedindo aprofundamento de trocas interpessoais por outras lentes de percepção sobre ele. Sempre haverá os suficientes, lindos e prestigiados olhos azuis que o posicionará, por vezes contra sua vontade. E no limite do jogo ritual dos elogios, num dado cenário com outras crianças, as palavras poderão vir a ser para cada um, inclusive para ele, de amorosa aceitação servil ou violenta rejeição.

Dado que vimos que existem consequências ambíguas para quem recebe, passemos então a observar os efeitos para a plateia da cena dos lindos olhos azuis. Consideremos que marcadores do corpo são elementos centrais da identidade, ou seja, são como nos apresentamos e nos distinguimos dos outros. Relembremos ainda que estamos tratando de crianças em idade escolar e na escola, ou seja, em plena construção de suas identidades e mediadas por profissionais da educação.

Identidade pressupõe o outro relacional. Significa que nos reconhecemos brasileiro pela presença do estrangeiro, mulher pelo homem, negro pelo branco, popular pelo rico e por aí vai. Com isso, atribuir identidade é causa e consequência também, primordialmente, de hierarquizar pessoas, ideias, emoções e estéticas. A coloração diversa dos olhos, como os demais marcadores do corpo, então, acompanha em nós uma percepção de distinção de origem e nacionalidade, classe social, etnia, concepção de mundo, valores, competências, predileções. Consequentemente, nos enquadra numa escala hierárquica de maior ou menor cota de poder e prestígio social em cada situação vivida.

Como é relacional e marcada no corpo, as identidades são sensíveis aos elogios. Aquele que é merecedor do aceno por possuir atributos prestigiados, superiores, recebe estima constante por essa posse inata, hereditária. Assim, ter olhos azuis é uma benção por não ter olhos pretos, castanhos da maioria. O inverso se torna incompetência para receber notável estima. Para uma criança na escola, com sua identidade em formação, se trata de percorrer uma jornada tendo de saída o que ela tem ou não em sua condição perene, encarnada, definidora.

Nos percebemos e nos constituímos não pelo que somos, mas pelo que percebemos que os outros percebem em nós. E é aí que o elogio atua poderosamente. Crianças passam a identificar – o que até então poderia ser irrelevante – que possuem distintivos a serem manuseados no jogo dos engajamentos e conflitos com o outro. Uma construção, portanto, sempre auto-hetero-reflexiva de si mesmo.

Tanto mais forte é essa percepção e efeito quanto mais prestigiada for a pessoa que elogia. Não são apenas professores que detém esse poder. Como em outro exemplo corriqueiro, quando meu filho tem a cor dos olhos destacado de forma entusiástica por uma mãe negra, desconhecida, ao lado de sua criança. Quando retribuído o elogio identificando os “brilhantes olhos de ébano” da pequena observadora, responde a mãe: “você só pode estar brincando, bonitos são os do seu filho”. O ritual do elogio, aqui expresso pelos adultos e acompanhado pelas crianças, constrói aproximação, mas também, amorosamente, emite classificações e hierarquias que terão ressonância difusa com o tempo para todos na cena, em especial as crianças.

Não nos esqueçamos que até aqui eu escrevi sobre elogios dirigidos para pessoas bem-posicionadas na hierarquia social em linha com seus atributos físicos e que, mesmo assim, isso não tem efeitos apenas positivos. Além disso, que somos bastante sensíveis e reativos para as acusações depreciativas as quais pessoas e grupos subalternizados são expostas. No entanto, pouco percebemos que o elogio classificatório e limitador dirigido as pessoas em condições desprestigiadas ocorre habitualmente.

É o “negro bom de bola e ginga” que implicitamente está marcando um lugar longe das práticas intelectuais mais valorizadas em razão de uma raça ou origem; é a “sensibilidade materna” que aprisiona o gênero feminino na escravização do cuidado e longe do empreendedorismo ou da liderança institucional; é a “criatividade do brasileiro” enaltecendo nossa identidade nacional e de classe pelos arranjos improvisados, mas desqualificando nossa capacidade de dominar processos racionais, disciplinados, planejados e de longo prazo. O processo de enquadramento de grupos e pessoas como minorias sociais se faz com estigmatizações sem dúvida, mas também, gentilmente, com elogios.

Não se trata de vitimizar ou acusar indivíduos pela sua posição hierárquica em razão de qualquer atributo do corpo que marque as identidades em jogo. Não é, tampouco, sentenciar pessoas que se utilizam de termos, frases, gestos ou possuam performances corporais coloniais privilegiadas. Se trata de olharmos ao redor, refletir sobre nosso convívio e como cada um sente, percebe e dialoga com o elogio a si e ao alheio. Com isso a atitude docente de elogiar pode ser uma referência reflexiva e replicada pelos estudantes no ambiente escolar, com seus próximos, com sua comunidade.

Precisamos cultivar uma pedagogia do elogio. Um bom exercício para isso pode ser professores e professoras, então, atentar para a hierarquização estética; promover elogios com foco em processos de construção e não em marcadores inatos; propor a disseminação de elogios coletivos ao invés de individuais; validar um dado elogio pela possibilidade de poder ser conquistado por todos, cada um ao seu tempo e modo, na forma de uma força motriz coletiva de superação de desigualdades; diversificar os elogios desconsiderando os atributos mais notórios e enaltecendo aqueles que o próprio ou os demais ainda não conseguiram enxergar.

É preciso, finalizo, que desarmemos a subjetividade emotiva das identidades individuais ou de grupos de pertencimento na origem, de forma que o processo de construção do eu não seja exclusivamente se distinguir do outro próximo, mas encontrar motivações para uma emancipação das cores, das formas, das classes. Juntos.

 

Alexandre Jackson Chan-Vianna é professor da Faculdade de Educação da Universidade de Brasília.

 

 

 

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