Por Elias Pereira
Aos prantos, com tremores no corpo, ensanguentada e em estado de choque, Lindalva vomitou quando viu a quantidade de sangue que avermelhava o chão do barraco e escorria pela rua 31 de Março – uma viela comprida abarrotada de casebres com telhados de zinco, madeiras podres, alvenaria sem acabamento e janelas e portas protegidas por grades de ferro. As vísceras, os miolos e os pedaços dos dedos e das mãos espalhadas pelas paredes adornavam e sujavam e entristeciam a pequena moradia. As quatro jovens bem que tentaram se defender por detrás da Bíblia.
– Tirem o livro da frente, miseráveis! Fuzil não sabe ler! – gritou a Cereja Bel Zebhu -, enquanto disparava o rifle à queima roupa e ria dos miolos estourados, dos dedos arrebentados e dos gritos de desespero das jovens.
– Agente Matias, chama o Suelison e alguns policiais e retira esses corpos daqui. Rápido. A guerra está apenas começando. Bota tudo no meio da rua para servir de exemplo e desencorajar os metidos a valentes.
A patrulha seguiu em frente, escalando o morro e atirando para todos os lados em rajadas simétricas, em disparos uníssonos a atingir corpos e a encher as vielas de sangue, gritos e gemidos. Comerciantes fecharam rapidamente as suas portas e ninguém ousou sequer olhar pelas frestas dos barracos. As ruas ficaram desertas e os corpos ensanguentados emudeceram.
Os bagaceiros vestiam uniformes negros camuflados, coturnos altos, gorros na cabeça e mascaras esverdeadas encobriam os seus rostos. Mas muitos deles exibiam as faces duras e os olhos frios dos assassinos de aluguel. Os uniformes não tinham bolsos, mas o tecido brilhava e cegava quem o olhasse com firmeza.
Ao cruzar com uns senhores circunspectos e amedrontados o detetive Malaco Brisas zombou:
– Estão pensando que são gente? A festa acabou. Podem dar adeus às suas dores.
– Mata! Mata logo e deixa de conversa fiada, detetive. Temos meta a conquistar.
A rajada de metralhadora varreu o chão, esfumaçou o ar e varou os cinco corpos que tombaram no meio da viela enquanto a patrulha seguia em frente mirando e atirando nos barracos, tocando o terror pelas vielas estreitas e suas botas pisoteavam corpos e o esgoto misturado ao sangue que escorriam a céu aberto.
– Maninho onde é que você pensa que vai? E você negro retinto, não se enxerga, não? Sentados, os dois. Quero saber onde é que estão os seus irmãos? Vocês acham que continuarão no mundo dos vivo, né? Podem rezar, se quiserem, mas duvido que Deus vá conseguir ouvir. Ele anda muito ocupado com os mais de quatrocentos mil cepeefes cancelados.
Um manda-chuva tosco e homicida aboletado no Planalto Central comandava a sangueira.
– A guerra está declarada. Aqueles fardados da antiga ficaram vinte e dois anos no poder e mataram pouco.
Foram necessários vários veículos Rabecão para a retirada dos corpos. Empilhados na praça central do bairro foram contados vinte e cinco mortos. Espalhados pelas vielas e pelos becos, não se sabe mais quantos. Familiares foram impedidos de chorar os seus mortos e de tocar os seus corpos. Os policiais foram se dispersando nas viaturas. O comandante se derretia em auto elogios e contava vantagens.
A menina Lindalva gritava de dor e de tristeza e de raiva:
– Covardes! Assassinos! Não ficarão impunes!
Elias Pereira é músico e escritor