Jacarezinho: tragédia é o cacete!

Por Vidomar Silva Filho

Rejeito o conservadorismo na língua. O destino de tudo na língua – forma e sentido – é transformar-se, plasmar-se a usos e valores constantemente mutáveis. Raras palavras há como ‘merda’, que conservaram seu significado e forma ao longo de dois milênios de uso. Só para ficar num exemplo da deriva dos sentidos e usos, ‘vagabundo’, originalmente ‘aquele que vaga’, progrediu para ‘desocupado’, ‘vadio’, ‘imoral’, ‘de baixa qualidade’ e, ao migrar para o feminino neste nosso universo misógino, virou sinônimo de ‘puta’.

Isso posto, não se tome como birra de conservador minha recusa a que se estenda o significado de um termo até distorcer a compreensão da realidade. Explico: um veículo de imprensa de viés à esquerda que muito prezo e respeito referiu-se ao massacre de anteontem (6/5/21) na favela de Jacarezinho como “tragédia”.

O título da matéria, “Operação policial termina em tragédia: 25 mortos no Rio”, mereceria uma crítica já em “operação policial”. ‘Operação’ sugere planejamento criterioso, metódico e execução calculada. Mas o que se viu depois do assassinato do policial André Frias foi, segundo relatos dos moradores, um ataque de fúria desmedida, que resultou em trabalhadores feridos em um trem de passageiros e em 27 mortes de civis, segundo a última contagem de que tive notícia. Há relatos de execuções sumárias, de ataques a faca, de vilipêndio de cadáveres realizados por policiais. Dez horas de puro horror.

Mas voltemos ao termo ‘tragédia’. Caracteriza a tragédia grega a inexorabilidade, a inevitabilidade do destino. Édipo, ao buscar fugir do destino que lhe anunciara o oráculo, acaba justamente por fazer com que a previsão se realize. O inevitável da tragédia clássica tinha como causa poderes maiores que as forças dos homens, que nada podiam ante a vontade dos deuses. Portanto, entendo, só se pode chamar de tragédia aquilo que as intenções e forças humanas não conseguiriam evitar.

À falta de deuses arrogantes, cruéis e vingativos, hoje são as forças incontroláveis da natureza a provocar tragédias. Pode-se chamar de tragédia, por exemplo, a morte de 250 mil pessoas vitimadas pelo tsunami de 2004 no Oceano Índico. Mas detesto quando se chama de tragédia o que aconteceu após o rompimento da barragem em Mariana, no ano seguinte. Aquilo foi um gigantesco crime contra as populações e o ambiente. Chamar o crime de Mariana de tragédia só tem contribuído discursivamente para que se trate como acidente o que foi resultado direto da irresponsabilidade e ganância capitalista. Com isso, os culpados jamais serão devidamente punidos, nem obrigados a reparar os danos e indenizar as vítimas.

Então chamemos o horror de Jacarezinho do que efetivamente é: crime do estado. O massacre (tragédia, o cacete!) é resultado lógico e certo de políticas de estado genocidas. A chacina (tragédia, o cacete!) produz resultados irrelevantes em termos de combate crime. Vinte e tantas pessoas foram mortas, a vida de milhares de outras foi posta em risco a troco de quê? Os ganhos da “operação” foram pífios. As armas aprendidas não são nada em comparação com as milhares que continuam nas mãos dos bandidos nas favelas do Rio. Não são nada sequer perto dos 117 fuzis aprendidos no Vivendas da Barra.

A justificativa para a ação criminosa do governador e seus subordinados é o suprassumo da hipocrisia: visava-se proteger a população contra os criminosos, em especial, crianças e adolescentes aliciados pelo tráfico. Mas a criminalidade continua lá, incólume. Jacarezinho não ficou mais tranquila e segura depois da chacina. Quanto às crianças e jovens, se o senhor governador quisesse efetivamente protegê-los´, apoiaria políticas efetivas de combate à pobreza, não aos pobres.

Insisto: chamemos a barbárie de Jacarezinho de massacre, chacina, crime de estado. Chamá-la de tragédia só vai contribuir para que a culpa se dilua no abstrato e para que a violência do estado burguês contra os pobres se perpetue.

 

Vidomar Silva Filho é doutor em Linguísica pela UFSC e professor de Língua Portuguesa e Literatura do Instituto Federal de  Educação, Ciência e Tecnologia de Santa Catarina (IFSC)

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