Guerra de Narrativas (Artigo Científico)

 

Guerra de Narrativas: a construção da história da ditadura brasileira e invisibilização das personagens e seu impacto nos Direitos Humanos

 

Eduardo Reina[1]

José Pascoal Mantovani[2]

 

Resumo:

Este artigo se propõe a analisar narrativas da ditadura militar brasileira a partir do arcabouço teórico da teoria da cotidianidade somado aos “Think Tanks”, ações que propiciam violência de pensamento e na cidadania nas cidades, e se tornam responsáveis pela criação de historiografia e reportagens que ocultam personagens/vítimas da ditadura civil-militar. Três são os eixos teóricos deste artigo, a saber (i) teoria do cotidiano que contemplará a abordagem de Guimarães (2002) que trata da cotidianidade forjada a partir de aspectos narrativos, articulado com pressupostos hermenêuticos de Gabnebin (2006) e apropriação do cotidiano de Certeau (1990); (ii) a estruturação das “think tanks” como fábricas ideológicas e construção de opinião pública; (iii) narrativas sobre a ditadura militar brasileira, a fim de repensar até que ponto o fato foi manipulado e conseguiu criar uma consciência coletiva sob o prisma ideológico de apenas uma das partes envolvidas nos conflitos. Como peroração, são propostas pelos autores algumas provocações, interpretações e devaneios que contemplam a dimensão ideológica que, arbitrariamente, impõe certa homogeneização na hermenêutica da história nas cidades e no Estado.

Palavras-chaves:

Cotidianidade; Ditadura; Comunicação; Direitos Humanos; Cidades; Guerrilha do Araguaia

 

INTRODUÇÃO

A proposição deste texto é analisar as narratividades presentes em textos relacionados a ditadura militar brasileira (1964-1985), especificamente ao que tangencia a história da guerrilha do Araguaia, em que se evidência como a cotidianidade foi manipulada por uma ideologia que exercia controle e manipulação no cotidiano das cidades. Compreender os autores, bem como os contextos é tarefa fundamental para interpretar coerentemente os acontecimentos e, assim, encontrar uma nova história. Fatos que teceram fortes e contínuas influências na sociedade em geral, a partir do mais simples povoado até os grandes centros e metrópoles. Fatos que teceram fortes e contínuas influências na sociedade em geral, a partir do mais simples povoado até os grandes centros e metrópoles. Este elemento escancara uma face oculta da ditadura que manipulou e mexeu com os direitos humanos de todos os brasileiros. Desde aqueles que foram ocultados e colocados à margem da história, até aqueles que sofreram brutalmente com a violência da ditadura, mortos e desaparecidos e seus parentes.

Como aparato teórico, este artigo se propõe a dialogar, em um primeiro momento, com a teoria do cotidiano e da cotidianidade, reflexos nas cidades, na violência e nos direitos humanos. Tendo como base teórica Guimarães (2002) em uma releitura aos textos de Agnes Heller, apontaremos a tênue diferença entre o cotidiano e a cotidianidade. Se o cotidiano é visto, em poucas palavras, como a agenda estabelecida para o dia, a cotidianidade, por sua vez, é o toque de excepcionalidade dentro do ordinário. Não há cotidianidade sem o cotidiano, por isso, os pressupostos hermenêuticos de Gagnebin (2006) nos auxiliará nessa jornada interpretativa e imaginativa, bem como a apropriação do cotidiano apresentado por Certeau (1990).

A segunda parte deste artigo trilhará na apresentação e compreensão das Think Tanks, mais conhecidas como fábricas de ideias – como propõe Reis (2017) – são ferramentas fundamentais para uma releitura dos mecanismos que influenciaram e influenciam a sociedade. Compreender as Think Tanks é compreender como a opinião pública é forjada, quando não manufaturada. Além de conceituar essa ferramenta ideológica, apontamos seu impacto em descredibilizar e/ou falsear algumas ideias que estão postas e aceitas tanto pela população como pelo meio acadêmico. Para tanto, as Think Tanks se apropriam de personagens que estão travestidos do rigor necessário para a crítica e, assim, (re)criam verdades, perspectivas e hermenêuticas.

É a partir deste ponto que articulamos a terceira parte deste artigo que trata das narrativas sobre a ditadura militar brasileira (1964-1985), com o intuito de repensar até que ponto os fatos históricos, especificamente a guerrilha do Araguaia, foram manipulados e, desta maneira, criou-se uma consciência coletiva ou memória coletiva forjada pelos dominadores, pelo lado ‘vencedor’? Até que ponto as memórias constitutivas são verdades alternativas que correspondem a interesses de determinados grupos que buscam permanecer no poder? E, até que ponto essa invenção histórica foi e é capaz de homogeneizar condutas em tempos contemporâneos?

Como peroração deste artigo, os autores propõem algumas provocações ao que tangencia a releitura da história, especificamente a ditadura militar brasileira, haja vista que há uma nuvem saudosista em nossos dias que deslumbra o que nunca foi; ovacionam uma distopia. Outro esforço significativo será apresentar algumas interpretações e devaneios sobre a constituição ideológica que foi fabricada em terras brasileiras e que, ainda que de modo arbitrário, é assumida como uma narrativa natural da história brutal inerente ao século XX brasileiro. Os autores se propõem a repensar e interpretar as homogeneizações que violentam constantemente o pensar histórico da história a ditadura militar brasileira.

1 – Teoria da cotidianicidade

“Eu sei que a gente se acostuma. Mas não devia…” essa é a frase que Marina Colassanti escolhe para desenvolver seu poema sobre a cotidianidade. Automatizar para sobreviver; ‘Mecanicizar’ a fim de orbitar no labirinto transhumano. Colassanti escolhe narrar a cotidianidade sobre o prisma do que se tornou irrefletido; de tão comum, irrelevante, irrisório ou, até mesmo, desprezível. Temas que perpassam a realidade do sujeito que é forjado a partir de um cotidiano reificado.

Desta maneira, para uma compreensão coerente do cotidiano se exige uma postura de superação do senso comum, bem como das comodidades inerentes a pseudos verdades que permeiam a realidade do sujeito. Ao destacar a ideia de cotidiano é preciso considerar a normalização da rotina, da conduta, dos hábitos individuais e coletivos, das crenças plurais, além, é claro, do impacto do tecnocentrismo e das comunicações e mídias em massa na formação do indivíduo.

Há um contraste significativo nesse processo hermenêutico de compreender o cotidiano, bem como a cotidianidade. Ainda que haja demasiada homogeneização nas condutas dos sujeitos, nas causas e efeitos de suas ações e reações, é imprescindível destacar que o cotidiano é feito por pinceladas de não mecânico, como destaca Heller:

A característica dominante da vida cotidiana é a espontaneidade. É evidente que nem toda atividade cotidiana é espontânea no mesmo nível, assim como tampouco uma mesma atividade apresenta-se como identicamente espontânea em situações diversas, nos diversos estágios de aprendizado. Mas, em todos os casos, a espontaneidade é a tendência de toda e qualquer forma de atividade cotidiana. A espontaneidade caracteriza tanto as motivações particulares (e as formas particulares de atividade) quando as atividades humanogenéricas que nela têm lugar (2000, p. 30).

Heller evidencia que o cotidiano tem como estrutura fundamente a espontaneidade, isto é, aquilo que não é previsto, que extrapola as fronteiras e limites das mecanizações arbitrárias a vida. Assim, pensar o cotidiano de um prisma teórico implica descobrir o incomum no repetido. É descobrir que a essência do cotidiano está no não-cotidiano ou na cotidianidade. (GUIMARÃES, 2002, p.11). Pensar sobre o cotidiano é, como se percebe, ater-se aos indícios que se desvelam paulatinamente no labor de interpretar sobre o fato e suas complexidades. É nesse processo hermenêutico que as abstrações assumem silhuetas objetivas, como descreve Guimarães:

Para Heller a vida cotidiana é a constituição e reprodução do próprio indivíduo e consequentemente da própria sociedade, através das objetivações. O processo de objetivação se caracteriza por essa reprodução, que não ocorre do nada para se efetivar, ela pressupõe uma ação do homem sob o objeto, transformando-o para seu uso o benefício (2002, p. 12).

 

Nota-se que “chama-se de objetivações em si aquilo que constitui a coisa por si mesma, ou seja, ela é aquilo porque não é outra coisa”. (GUIMARÃES, 2002, p.12). Essa objetivação é imprescindível para o sujeito que se lança no mundo encharcado de linguagem, símbolos, ritos e mitos, sentidos e significados. Compreender e dominar tais objetivações dá ao sujeito aporte necessário para vivenciar o cotidiano, pois “a objetivação em si é que está presente no cotidiano do senso comum e é a que cria as condições para vivermos em determinada sociedade com seus costumes, ritos, etc.” (GUIMARÃES, 2002, p. 12).

A ideia de objetivação está relacionada com a ação do sujeito em apropriar-se dos instrumentos e produtos, costumes e linguagem do meio em que ele está inserido. É por meio dessas apropriações que os sujeitos vivem em sociedade, todo o processo axiomático está relacionado com a boa (ou não) apropriação dos signos, sentidos e significados em que está inserido.

Nota-se, assim, que é diante dessa apropriação de sistemas complexos e dialógicos que o sujeito faz-se fazendo. São as apropriações das peculiaridades do cotidiano como por exemplo: da heterogeneidade sui generis; as hierarquizações em todos os âmbitos da vida; as repetições (rotinas); a dimensão financeira (economicismo); os lapsos de extravagância ou de pessoalidade (espontaneísmo); a noção probabilística de causas e efeitos; as formas de interagir com o mundo (entonação); o olhar para a história (precedente); a dimensão mimética (imitação); a efetividade das ações (pragmatismo); as comparações (analogia) e julgamentos e juízos provisórios como preconceitos e ultrageneralização (Cf. GUIMARÃES, 2002, p.12-19) enfim, elementos que são rotineiros mas que diante de uma postura pincelar atípica aponta para o excepcional.

A ideia do extraordinário dentro do ordinário é o que evidencia a cotidianidade: O extraordinário do cotidiano é superar o próprio cotidiano, […] esse extraordinário inclui a dimensão da cotidianidade ou do não-cotidiano, porque é um cotidiano que tem que extrapolar sua particularidade, sua umbilicalidade, sua centralidade”. (GUIMARÃES, 2002, p. 19).

A citação destaca que a ideia de consciência não é suficiente para o processo de superação do cotidiano, haja vista que a consciência pode ser apenas uma forma de interpretar o que se é com o que se espera que seja. Portanto, é mais do que a tomada de consciência é um rompimento legítimo do consuetudinário. Mas, como romper com o banal? Uma ferramenta bastante eficaz é a arte, como destaca Guimarães:

A arte é considerada uma dimensão do não-cotidiano, porque através dela é possível liberar a criatividade e a imaginação, é possível romper com regras e normas estabelecidas, ela representa a fronteira sem limites, onde tudo é possível a todos, portanto, em igualdade de condições. É uma dimensão que representa o rompimento com o instituído, a ruptura com as amarras do cotidiano particular; é o grande ‘vôo’ do homem (2002, p. 19-20).

Observa-se que a arte é mais do que um meio de extravagância, é o salto do sujeito para além da história, mesmo considerando indivíduo como ser histórico. Ainda que o espectro épico contorne a ideia da cotidianidade, não é possível viver o não-cotidiano sempre, haja vista a banalização da cotidianidade, ou seja “o homem não pode viver sempre na esfera do não-cotidiano, ou seja, não passará o tempo todo num processo de superação de sua relação de indivíduo com as formas de atividade que lhe dão sucesso e mobilidade na vida cotidiana” (GUIMARÃES, 2002, p.21).

A noção de cotidianidade está atrelada diretamente com a construção das subjetividades dos indivíduos. Logo, sua axiologia, isto é, seus valores, estão marcados por traços repetidos no cotidiano. Nessa dialética de apreensão e apropriação dos sentidos e significados, fato específico da cotidianidade, caricaturam os traços das condutas morais e éticos da sociedade, como destaca Guimarães:

A moral pressupõe valores que se baseiam na consciência tanto ética quanto social e que acabam por definir toda ação e comportamento. Ou seja, a moral subjaz toda ação. Porém a grande diferença está em esta ação ser ou não do cotidiano particular. Para que ela se caracteriza pela não-cotidianidade é necessário que a ação tenha um conteúdo moral (2002, p. 23).

Nota-se que o pragmatismo presente na ética/moral é o que evidencia a própria cotidianidade. Guimarães, em uma releitura de Heller, aponta para este imbróglio ético/moral constituinte do sujeito:

Segundo Heller (1991, p. 133-138), existem quatro fatores que caracterizam o conteúdo moral das ações, a saber: (1) a elevação das motivações particulares, que se definiriam por uma opção ao que se refere à genericidade em o posição a sua particularidade; (2) a escolha de fins e conteúdos, voltados à genericidade, ou seja, os fins e conteúdos da ação não devem ser definidos pelo interesse do eu particular; (3) a constância na elevação às determinadas exigências, isso significa que, buscar a superação dos interesses da particularidade deve ser uma opção constante e busca consciente, não deve ser um impulso de momento e; finalmente (4) a capacidade de aplicar estas exigências em todas as situações de vida, ou seja, é uma busca consciente desta elevação que deve ter aplicabilidade nas situações concretas da vida, não é uma dimensão puramente etérea ou abstrata, ela deve se materializar no próprio cotidiano (2002, p. 23).

Em uma breve análise desta citação se verifica que o conteúdo moral das ações perpassa pela tensão entre as motivações particulares em relação as tendências voltadas a genericidade, isto é, algo vago, indeterminado, genérico; denota, também, a arbitrariedade dos conteúdos e fins generalistas em relação as tendências particularistas do sujeito entre escolher e decidir sobre determinada situação; destaca a adequação do sujeito em relação as exigências das necessidades externas, sendo estas, por sua vez, as que balizaram as posturas, as intencionalidades, as adequações do sujeito, todo este processo de modo consciente ao que se estabelece socialmente; e, por fim, o quarto elemento é a constante adequação do sujeito as instituições hipostasiadas, de modo silencioso e naturalizado, o sujeito se empenha – conscientemente – em se adequar as exigências compulsórias que normalizam no cotidiano.

O que pulsa a partir da hermenêutica desta citação é a ideia de que o cotidiano, bem como a cotidianidade, está fortemente elencado com a construção das subjetividades dos sujeitos. As condutas de manada, as objetificações sistêmicas, as normalizações dos hábitos, a domesticação do eu, enfim, elementos transcendentais que estão de modo intensivo conectados com as eminências contingenciais. Torna-se uma aporia tentar responder se é o sujeito que impacta a sociedade ou a sociedade que (des)constrói o sujeito, todavia, considerar que este fenômeno formativo do sujeito reverbera na compreensão e apreensão do cotidiano e cotidianidade.

Nesta seção, tentamos construir uma teoria sobre o cotidiano e a cotidianidade, corroborando para o discernimento entre estes dois conceitos, haja vista que o cotidiano é aquilo que está exíguo ao senso comum, as rotinas diárias pertinentes e constantes para todos os sujeitos. Já a cotidianidade se realça como aquilo que salta do comum, que se vincula ao pessoal, que eterniza a rotina. Entretanto, toda essa forma de perceber e interagir com o mundo está cativo ao sujeito e sua subjetividade. Uma subjetividade que, em certa medida, está vulnerável as investidas ideológicas sociais, as quais têm o poder de forjar ou desmantelar percepções éticas e morais. Compreender, pois, as fábricas de ideias passa a ser um tópico significativo que será tratado em seguida.

2 – Aparatos conceituais dos Think Tanks

A contemporaneidade é marcada pela apropriação de expressões de um determinado ramo do conhecimento por outra área do conhecimento. Por exemplo, a expressão resiliência comum no ramo da física em explicar como um determinado corpo consegue retornar para sua forma original mesmo passando por situações limites. Essa mesma expressão foi utilizada pela psicologia para tratar da capacidade humana de enfrentar problemas limites e, ainda assim, conseguir superar permanecer humano. Poderiam ser elencados diversos exemplos, todavia, vamos nos restringir a think tanks.

A expressão think tanks surgiu em um contexto bélico, especificamente na Segunda Guerra mundial, em que alguns ambientes estavam devidamente seguros para se tratar de temas inerentes ao momento bélico, como aponta Reis: “Tal nomenclatura advém de um jargão militar adotado após a Segunda Guerra Mundial para descrever ambientes seguros em que planos estratégicos com impacto potencial elevado poderiam ser discutidos” (2017, p.126). Com o passar dos anos a ideia de Think Tanks foi apropriada por outras áreas, de modo que hoje o conceito mais difundido é:

Think Tanks são organizações políticas independentes, não pautadas por interesses privados e sem fins lucrativos que produzem e se amparam em conhecimentos especializados e ideias para obter apoio e influenciar o processo de elaboração de políticas públicas” (REIS, p. 126).

Diante das demandas da contemporaneidade é interessante a figura de organizações isentas de influências, neutras, preocupadas com a propagação de um determinado acontecimento escusa de interferências dos poderes públicos ou privados que possam manipular as informações e forjar ideologias alienantes. Nessa direção destaca Reis:

Dentro dessa lógica, tais organizações conduzem e disseminam pesquisas e estudos, promovendo o debate teórico e a busca por soluções racionais para problemas contemporâneos. Mais ainda, atuam de forma a maximizar sua credibilidade e o acesso político como forma de influenciar tomadas de decisão e enquadrar aspectos do debate público (2017, p. 127).

Se por um lado a intencionalidade das Think Tanks respondem as contingências atuais, haja vista a grande onda de verdades alternativas que se instauram despoticamente, por outro lado há grande variedade, bem como heterogeneidade quanto ao que se refere aos Think Tanks. Muitas instituições assumem tal nomenclatura, todavia, em grande medida, destoam das variações conceituais expostas – haja vista a não respeitabilidade de neutralidade ou não interferência de determinadas forças sociais.

O impacto que Think Tanks possuem na sociedade é significativo. Pode, por exemplo, desestruturar a e manufaturar a opinião pública, gerar um sistema que beneficie a população, mas, ao mesmo tempo, desorganiza e desestabiliza as forças instituídas. Seria coerente que os poderes estatais investissem em Think Tanks, como afirma Reis:

o governo, de acordo com essa perspectiva, deveria deixar de lado motivações puramente políticas e partidárias para abraçar um saber especializado que atuaria como o principal guia para a formulação de política públicas, aumentando, assim, sua eficiência e promovendo uma administração cada vez mais técnica e profissionalizada (2017, p. 127).

Assim, emerge a pergunta: até que ponto a verdade – com todas as suas facetas – é digerível por àqueles que buscam permanecer e perpetuar a condição de poder?

Daniel Reis destaca que as Think Tanks brasileiras recebem o aporte financeiro e origens estatais. Organizações como “Fundação Getúlio Vargas, o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), a Fundação Joaquim Nabuco e a Fundação Oswaldo Cruz” (2017, 128). Por mais que as proposições sejam fincadas na premissa de instituições com a responsabilidade com a verdade, ainda assim a nuvem de dúvidas sobre a plena e autônoma independência dessas instituições fica em xeque. De modo que a fragilização da credibilidade desgasta o prestígio de Think Tanks pois “toda a noção clássica de Think Tank encontra-se atrelada em um raciocínio centrado na ideia de credibilidade que nos soa bastante familiar” (REIS, 2017, p. 129).

Faz-se importante destacar a importância da credibilidade como fator determinante para o impacto massivo das Think Tanks. Não se consolida como instituição influenciadora de opinião entidades que não possuem seu caráter ilibado. É por meio da credibilidade que Think Tanks ganham força e expressão para impactar a sociedade, bem como as decisões políticas. A credibilidade apresenta que grande parte da sociedade é representada por tais Think Tanks.

Tal expressividade tem respaldo, inclusive, pelo meio acadêmico científico, haja vista que ao passo que instituições com alta credibilidade acadêmica passa a externar resultado de pesquisas que são empiricamente comprovadas, as Think Tanks passam a transitar na órbita do senso comum, agora, com a legitimação acadêmica de instituições que estão encharcadas de credibilidade que carrega como predicado dois caminhos importantes: (i) qualidade: pois são pesquisas fundadas na epistemologia; (ii) (pseudo) independência, pois ao passo que há a áurea epistêmica, logo, como efeito desta causa, dá-se a sensação de emancipação de qualquer órgão interessado. Porém, não é bem esse viés que acontece na prática, como destaca Reis:

O que entra em jogo é uma lógica que exploramos previamente: um ator aparentemente desinteressado aumenta seu potencial de exercer influência no processo de formação da opinião, seja ela de legisladores ou de outros públicos específicos. Essas fundações e institutos precisam, para tanto, de uma estrutura capaz de garantir sua independência – algo que era inicialmente assegurado pela crença dos filantropos responsáveis pela criação desses centros de conhecimento na existência de uma objetividade científica que colocaria com os avanços da humanidade (REIS, p. 129-130).

Atualmente, Think Tanks buscam pessoas habilitadas, pesquisadores que consigam apresentar ideias que tenham respaldo acadêmico, científico e, também, uma retórica que equalize nos grandes meios de comunicação em massa. Para tanto, é importante o patrocínio financeiro. Fica, assim, difícil mensurar até que ponto os Think Tanks têm isenção de ideologias, que são neutras ao apresentar ideias. Como mensurar que Think Tanks assumiram papel ideológico, silencioso, das entidades que estão não poder? Até que ponto Thinks Tanks podem ser mecanismos de forças para consolidar políticas hegemônicas de autores que permanecem no poder? Este ceticismo é destacado por Reis ao mensurar a influência invisível de alguns agentes:

Na busca por financiadores, emergem indagações sobre como manter a independência diante das vultosas quantias investidas e como evitar que capital dite os rumos das pesquisas realizadas. Esse é um ponto recorrente questionado, por exemplo, nos casos em que governos são responsáveis por grande parte dos recursos monetários de uma instituição, assim como em iniciativas financiadas por organizações privadas que possuem interesse direto no tema sobre o qual o instituto versa (DIAS, 2017, p. 130).

Nota-se como Think Tanks ganharam espaço em um cenário sócio-político conturbado, o qual carece de referências e carente de agências que viabilizassem credibilidade, cientificidade, consistência, coerência e, sobretudo, neutralidade. Ao mesmo tempo que investir em Think Tanks é um serviço relevante para a sociedade, paralelamente, é bastante enigmático os fins dos recursos investidos. Isto é: uma instituição emprega certa quantia pecuniária em uma Think Tanks, por mais que esta instituição declare a quantia despendida neste órgão, Think Tanks não precisam responder qual foi o fim dado a quantia dada pela instituição ‘doadora’.

A perquirição que rompe tangencia ao que se refere aos investidores, isto é, não existem critérios de barrar os investidores, portanto, as instituições investidoras em Think Tanks podem ser de qualquer ramo, logo poderiam ser organizações que estivessem sofrendo algum tipo de denúncia. Sobrevém uma nuvem de desconfiança: até que ponto a neutralidade das Think Thanks se mantém diante de altos investimentos pecuniários? (Cf. DIAS, p. 134-135)]. Neste jogo de interesses recônditos, Think Tanks passam a responder (defender) demandas que contrastam com seus intuitos iniciais, pois:

O formato dos thinks tanks fornecia uma resposta para as preocupações monetárias, permitindo um financiamento agressivos não pelas corporações que estavam sendo alvo de críticas ambientais e de acusações de abusos contra consumidores, mas pelos fundos de caridade de seus proprietários e acionistas. […] Também de grande importância era o escudo fornecido por essa formação de financiamento, que, ao ocultar as corporações envolvidas, diminuía a possibilidade de que aqueles think tanks fossem encarados como entidades corrompidas, desprovidas de independência e que atuavam na defesa de interesses privados (REIS, 2017, p. 135).

Mais do que um compromisso com a verdade ou com o acontecimento em si, Think Tanks passam a responder a demandas específicas, sendo, assim, agentes formadores de opinião pública. Fábricas de discursos políticos. Compreender os Think Tanks como mecanismos que caricaturam o senso comum, e como fábricas ideológicas alienantes, as quais são equalizadas por expectativas estatais ou privadas, pode ser um viés arrojado para o despertamento crítico e reflexivo.

Outro ponto importante é a função de semear a insegurança e a dúvida em proposições consolidadas pela ciência ou academia, ao passo que são vozes destoantes aos ecos dos sistemas dominantes do mercado, da política, da religião, enfim, das engrenagens que sustentam a máquina global, como bem destaca Reis: “podemos defender […] que a evolução de uma série de práticas de influências voltadas para a criação de dúvidas e pautadas em lógicas da opinião pública culminaram na adoração da ideia de Think Tanks como poderosos armas retóricas” (2017, p. 138).

O que está em jogo não é a condição de criar uma nova teoria, ou um novo horizonte, em vez disso é criar uma nuvem de dúvidas, incertezas, insegurança. É por meio de possíveis falseabilidades, não necessariamente empiricamente comprovada, mas fincada, em grande medida, em silogismos superficiais, redutores e indutivos, que Think Tanks passam a ganhar novos horizontes pragmáticos.

Diante dos conceitos de Think Tanks, de seu impacto formativo ideológico, da sua relevância e antagonismo ao que esbarra as composições políticas, sociais, religiosas e filosóficas, estabeleceremos uma relação com as interpretações que pairam a contemporaneidade ao que se refere a ditadura militar brasileira (1964-1985). A seguir serão apontadas algumas narrativas que confrontam, destacam, distinguem e desvela o “ideal do verdadeiro” (SEBALD, 2008) a partir de narrativas autobiográficas do que foi vivenciar o impacto da ditadura militar brasileira.

3 – Ditadura militar: fatos sob o prisma da dominação

O tradicional olhar histórico sempre deu importância para documentos, arquivos e vozes da elite, daqueles que estão no alto da cadeia histórica, ou seja, para a cultura tradicional, explicita Michel de Certeau (1990). O intelectual francês chama a atenção para a necessidade de se ter interesse para além dos produtos culturais oferecidos no mercado. Ele aponta o dedo para aqueles que sempre ficaram esquecidos, colocados de lado e imbricados na história do cotidiano, embora sejam protagonistas do cenário e análise histórica. No Brasil, da ditadura civil-militar entre 1964-1985, o foco histórico reproduzido pela mídia de massa sempre teve a visão de quem esteve no poder. O chamado “subversivo”, aquele militante político contrário ao governo de plantão, tem sua voz grafada em vários livros e notícias jornalísticas. Mas que eram e continuam submetidas à voz maior da teoria formatada pela visão das elites e das Forças Armadas.

Vejamos: a história da guerrilha do Araguaia foi descrita por historiadores, jornalistas e pesquisadores em vários momentos. Contudo, esses trabalhos trazem poucos e os mesmo personagens envolvidos nesse período da história da ditadura brasileira, porque utilizam como fonte as próprias forças militares ou personagens ligados a eles.

Há literatura, conteúdo jornalístico e documentos específicos sobre os conflitos na região do Araguaia, que aconteceu na confluência de três estados: Goiás (atual Tocantins), Pará e Mato Grosso, entre o fim da década de 1960 e 1975. Cerca de 70 militantes do PCdoB tentaram criar uma zona livre em preparação ao combate armado à ditadura. Sob forte censura e força bruta, as Forças Armadas, polícias federal, militar e civil exterminaram tal resistência.

De maneira geral, publicações da mídia de massa e algumas da imprensa alternativa explicam parte do que foi o conflito no Araguaia, seu contexto social, quem estava envolvido. Mas pontos específicos sobre a guerrilha e muitos dos personagens permanecem obscuros nos registros formais. É o caso de José Vieira, filho de camponês da região, teve o pai assassinado nos enfrentamentos; foi sequestrado e passou 12 meses num quartel (REINA, 2019).

Oito livros reportagem ou de memórias contam parte da história de José Vieira. Publicado em 1986, A justiça do lobo – posseiros e padres do Araguaia, de Ricardo Rezende Figueira, apresenta a primeira citação sobre José Vieira, embora não contenha seu nome. Ele narra que

houve mesmo, conforme o padre francês Robert de Valicourt, um lavrador e seu filho de 16 anos que participaram da luta. O pai morreu e o filho foi levado pelas Forças Armadas, segundo a versão que corre, para Goiânia, onde teria ingressado na carreira militar (FIGUEIRA, 1986, p.28).

A informação foi contada a ele pelo padre francês Robert Valicourt, que atuou na região naquele período. Outro livro que cita José Vieira e também mantém oculta história desse filho de camponês é Guerrilha do Araguaia – a esquerda em armas, do professor da Universidade Federal de Goiás Romualdo Pessoa Campos Filho. O autor revela nomes que complementam a narrativa de Figueira.

Em São Domingos, mantivemos contato com dona Joana Almeida, viúva de Luís Vieira, morto numa emboscada, possivelmente no ano de 1973, e mãe de José Vieira, que, junto com o pai, aderiu ao movimento guerrilheiro, tendo sido preso nesse ano pelo Exército (CAMPOS FILHO, 2015, p.237).

Há breve depoimento (CAMPOS FILHO,2015, p. 238) de José Vieira dado em 1995, sobre o momento em que foi preso pelos militares junto com o guerrilheiro Piauí, em 1974. Tal fala está relacionada com narrativa descrita por Elio Gaspari no livro A ditadura escancarada. Ele escreveu a nota de número 199 (2002, p. 441), que cita o nome de Luiz Vieira – pai de José – como lavrador simpático aos guerrilheiros. Depois, em outra nota de pé de página, número 263 (2002, p. 455), consta a história da prisão do guerrilheiro Piauí sob a visão do depoimento dado por José Vieira ao professor Campos Filho. E, finalmente, Gaspari mostra que tinha conhecimento do sequestro de dois filhos de lavradores:

As forças militares pouparam pelo menos seis lavradores que, com suas famílias, internaram-se na mata a convite da guerrilha e, semanas depois, dispersaram-se. Pouparam também três adolescentes recrutados pelo PCdoB…. O menino José Vieira, que foi preso com Piauí, sobreviveu à terceira campanha e contou sua história. Passou um tempo na cadeia. Levaram-no para Belém e de lá para Altamira, onde o alistaram no Exército. Serviu por um ano e retornou para casa (GASPARI, 2002, p. 458).

Parte da história de José Vieira também é narrada por Nilmário Miranda no livro Dos filhos deste solo (2008). Os fatos estão incluídos no item sobre seu pai, Luís Vieira. Dão mais uma pista do que aconteceu com esse homem em 1974. Mas novamente o nome de José não é citado. A referência aparece na frase: “seu filho foi preso e, apesar de já estar com 24 anos, teve a idade reduzida nos documentos e foi forçado a prestar serviço militar” (MIRANDA, 2008, p.270).

Já o jornalista Hugo Studart, baseado em fontes e documentos militares, é outro que não trata José Vieira como vítima de sequestro. Em A lei da selva, diz que José foi preso em janeiro de 1974 (2006, p. 379). E o jornalista Leonêncio Nossa, em Mata! O major Curió e as guerrilhas no Araguaia, de 2012, cita o nome de José: “Luizinho, agricultor recrutado pela guerrilha, estava com o filho Zezinho no momento em que apareceu uma patrulha. O pai foi morto” (2012. p.167). Todas essas informações de Studart e Nossa são baseadas em fontes e documentos oficiais já haviam sido reproduzidas em 2005 pelos jornalistas Taís Morais e Eumano Silva, no livro Operação Araguaia – os arquivos secretos da guerrilha.

Enquanto isso, o tenente José Vargas Jimenez, que atou em grupos de combate do Exército no Araguaia sob o codinome Chico Dólar, descreve no seu livro Bacaba – memórias de um guerrilheiro de selva da guerrilha do Araguaia, a data da morte do pai de José, Luizinho, como 31 de dezembro de 1973. Mesma informação reproduzida por Studart.

O grupo de combate que rendeu José e Piauí foi o do tenente José Vargas Jimenez, o Chico Dólar. Os grupos de ‘Piauí’ e ‘Zé Carlos’ tinham prioridade ‘um’, para sua captura e destruição e suas presenças nas áreas estavam confirmada (JIMENEZ, 2007, p.60).

A narrativa do tenente aponta ainda que José Vieira “passou a nosso colaborador”.

Desse modo, a mídia de massa deixa de lado o que W. G. Sebald chama de o “ideal do verdadeiro”. A literatura política desse período histórico brasileiro, uma vez posta numa balança, penderá somente para um dos lados.

Dar voz aos excluídos, esquecidos, escondidos possibilita a construção da história e dá ao cotidiano sua verdadeira importância, conforme repara Eni Orlandi:

Nisso que me tem ocupado como silêncio constitutivo de todo dizer, essa seria uma das formas: o apagamento de outras vozes específicas que adquire caráter de evento histórico, institucionalizando o sentido (ilusão referencial, a da literalidade) e, mais do que isso, estabelecendo o campo do ‘dizível’. Aí se forma a necessária ilusão de que o que digo, eu digo a partir de mim mesma. Mecanismo imaginário que coloca na boca do sujeito as suas próprias palavras e que lhe dá o sabor de elas serem dele mesmo e não de outrem. Condição de unidade e de subjetivação sem a qual o sujeito não é sujeito de linguagem em plena contradição do que é sê-lo: ser o agente de e assujeitar-se. (ORLANDI, 2011. p.136).

 

4 – Provocações, interpretações e devaneios

Uma sequência também observada pelo historiador francês Michel de Certeau (1990), que comprova que a história deve ocupar-se com as maneiras diferentes de marcar socialmente o desvio operado num dado momento por uma prática. Ou seja, ele olha para o lado que a chamada “cultura erudita” faz vistas grossas. E chama isso de tesouro abandonado à vaidade dos proprietários da história, esquecido e eliminado por uma camada da sociedade que está no poder.

Assim, a teoria certeauniana coloca na mesa as criações anônimas e perecíveis que irrompem com vivacidade e não foi capitalizada ou registrada nos livros de história. Chama a atenção para a necessidade de se estudar fatos, personagens, eventos culturais que outrora estavam relegados ao esquecimento, invisíveis aos olhos dos historiadores e mesmo dos protagonistas da história devido à falta de registro formal, que compõe uma cultura singular, primária. Certeau forma a “Cultura do plural” (1990).

Numa parte de sua análise, que contém o Brasil, destaca a luta entre poderosos e pobres, onde a história deixa registrado uma “luta imemorial” entre poderosos e pobres. E “perpétuas vitórias” dos ricos e da polícia. Importante ressaltar que o próprio Certeau cita “o reinado da mentira” e o império da censura, que inibe que se fale a verdade em voz alta. Num breve e rápido paralelo com a história da ditadura brasileira, o historiador francês consegue resumir a ação da política de Estado que censurou todo e qualquer assunto, cultural ou do cotidiano, que não fosse de interesse das forças militares. Mesmo que isso criasse um fosse escuro e sem fundo na linha do tempo da história do Brasil.

No que dizia respeito à relação efetiva das forças produtoras da história e estudos, o discurso de lucidez trapaceava com as palavras falsificadas e também com a proibição de dizer, para mostrar em toda a parte uma injustiça – não só dos poderes estabelecidos mas, de modo mais profundo, a da história: reconhecia nesta injustiça uma ordem das coisas, em que nada autorizava a esperar a mudança (CERTEAU, 1990, p. 76-77).

O jogo criado entre poderosos e o restante da sociedade, segundo o autor, cria uma maneira de utilizar sistemas impostos, mas ao mesmo tempo constitui a resistência à lei histórica de um estado de fato e a suas legitimações dogmáticas. A versão escrita e narrada no cotidiano pelos donos do poder se perpetuam na historiografia do local. Mas também não é capaz de impedir que a voz ordinária ganhe outros rumos e, um dia, venha a ser ouvida.

Mil maneiras de jogar/desfazer o jogo do outro, ou seja, o espaço instituído por outros, caracterizam a atividade, sutil, tenaz, resistente, de grupos que, por não ter um próprio, devem desembaraçar-se em uma rede de forças e de representações estabelecidas (CERTEAU, 1990, p. 79).

Como vencer hoje a hierarquização social que organiza o trabalho científico sobre as culturas populares? Questiona o autor. Mexer na “sucata” da história, receita o estudioso francês.

A ordem efetiva das coisas é justamente aquilo que as táticas ‘populares’ desviam para fins próprios, sem a ilusão que mude proximamente. Enquanto é explorada por um poder dominante, ou simplesmente negada por um discurso ideológico, aqui a ordem é representada por uma arte. Na instituição a servir se insinuam assim um estilo de trocas sociais, um estilo de invenções técnicas e um estilo de resistência moral, isto é, uma economia do ‘dom’ (de generosidades como revanche), uma estética de ‘golpes’ (de operações de artistas) e uma ética da tenacidade (mil maneiras de negar à ordem estabelecida o estatuto de lei, de sentido ou fatalidade) (CERTEAU, 1990, p.88-89).

Mas não é bem isso que os registros historiográficos e da grande imprensa revelam.

A grande mídia, ressalta Muniz Sodré (2000), hoje e sempre teve a capacidade de mostrar apenas aquilo que importa para o mercado e, consequentemente, para a classe dominante. A divulgação é feita somente dos fatos marcados. Mantendo assim a história do cotidiano de acordo com essa vertente. O professor baiano chama atenção para a importância daqueles fatos escondidos. Fatos não-marcados não significam fatos sem importância social, e sim fatos não imediatamente relevantes para o cânone da cultura jornalística. São, portanto, normalmente desconsiderados pela marcação (pauta) da grande mídia, embora tenham alguma chance de aparecer em veículos alternativos ou serem objeto de análise em publicações de maior periodicidade, ditas ‘de qualidade’ (SODRÉ, 2009, p.76). O que significa que esses fatos, pessoas, eventos podem ser redescobertos pela própria mídia, jornalistas, pesquisadores, acadêmicos.

O próprio Certeau (1990) ressalta, como um modo de nunca deixar apagar as esperanças de que a história do cotidiano pode ser contada também pelas vozes dos chamados esquecidos, que “na ordem organizada pelo poder do saber (o nosso), como também na ordem das zonas agrícolas ou das indústrias, sempre é possível uma prática desviacionista”. Ele chama isso de retorno da ética, do prazer e da invenção à instituição científica na sua análise da teoria da vida cotidiana. A construção de uma imagem para a história.

E essa imagem, como diz o sociólogo francês Jean Davallon, é antes de tudo um dispositivo que pertence a uma estratégia de comunicação: dispositivo que tem a capacidade, por exemplo, de regular o tempo e as modalidades de recepção da imagem em seu conjunto ou a emergência da significação. E é um dispositivo, lembremo-nos, que por natureza é durável no tempo (DAVALLON, 2015, p. 28).

A arte de fazer história, construir as narrativas, o cotidiano nas cidades, no mundo atual, sob as vistas de Certeau, é um grande incentivo à redescoberta da história, sob o ponto de vista de outros personagens, que não aquela elite que sempre esteve representada nos livros de histórias, nas reportagens jornalísticas, nos estudos acadêmicos. A história é feita e representada em todas as camadas sociais, vai além da ideologia oficial. Está contida na vida de todas as pessoas e assim deve ficar registrada nos livros, mídia e academia. Não vem de cima para baixo. É horizontal. Um incentivo para dar sentido às coisas do mundo.

 

Considerações finais

A guerra de narrativas deixa claro que se o homem não narra, ele ignora, permanece excluído da cidadania. Influenciado diretamente ou indiretamente por organizações dos mais variados matizes, o discurso histórico e jornalístico cria um consciente coletivo que se sobrepõe ao cotidiano e, principalmente, cria uma versão sólida dos fatos, que se sobrepõe a qualquer outra narrativa que possa surgir ou furar a bolha da comunicação.

Isolar e esconder as vozes dos oprimidos faz desaparecer a voz da oposição ao poder hegemônico. É preciso retomar o direito à narrativa, pois o ato de narrar coloca em movimento o pensamento. Perder a narrativa é o mesmo que perder sua pátria, sua origem, seu espaço geográfico. A narrativa é a única ação que nos dá lucidez, capacidade de observar o mundo. É pela dialética da narrativa que a memória pode ser compreendida, pois é assim que a história é transmitida, os fatos se tornam a experiência que se pode passar adiante, e não apenas aquilo que é petrificado pela cultura de massa. Cria-se uma conduta homogeneizada excludente na história do país, das pessoas, do cotidiano.

A memória coletiva dos vencidos se distingue de diversos panteões estatais para a glória dos heróis da pátria, não só pela natureza dos personagens, sua mensagem e sua posição no campo do conflito social, mas também porque, aos olhos de Benjamin, ela simplesmente tem uma dimensão subversiva à medida que não é instrumentalizada a serviço de qualquer poder (LOWY, 2005, p.111).

Sodré (2000; 2014) diz que o desafio epistemológico da área de comunicação é construir um paradigma de conhecimento em que o discurso reflexivo não seja totalmente estranho ao senso comum dos agentes sociais da comunicação, expresso tanto na mídia quanto na diversidade de práticas culturais. Assim, vemos outras possibilidades para a visibilidade de um “ecossistema existencial em que a comunicação equivale a um modo geral de organização” (SODRÉ, 2014, p.25).

 

Referências bibliográficas

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Sobre os Autores:

[1]Jornalista, mestre em Comunicação Social pela Universidade Metodista de São Paulo. Atuou em jornais em São Paulo e interior como diretor de redação, editor executivo, colunista, editor e repórter; assessor de imprensa em sindicatos, empresas e autarquias. Autor dos livros Cativeiro sem fim (2019), Depois da Rua Tutoia (2016), No Gravador (2003). Integrante dos livros O Conto Brasileiro Hoje, Vol.5, (2007) e Contos e Casos Populares (introdução de Paulo Freire), 1984. E-mail: edu.reina@hotmail.com .

[2] Graduado em Filosofia e Teologia, Mestre em Ciências da Religião e Doutor em Educação pela Universidade Metodista de São Paulo. Coordenador do Grupo de Estudos ‘DOMAINE: Foucault em perspectiva’ na UMESP. Professor de filosofia no Ensino Básico e Superior. E-mail: jose.junior20@metodista.br .

 

Artigo científico publicado originalmente na revista Polifonia, da Academia Paulista de Direito.

Para acessar, segue link:

https://apd.org.br/guerra-de-narrativas-a-construcao-da-historia-da-ditadura-brasileira-e-invisibilizacao-das-personagens-e-seu-impacto-nos-direitos-humanos/

 

 

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