Sonia Castro Lopes
Há quem afirme que o golpe deflagrado pelos militares em 1964 teria ocorrido dez anos antes, não fosse a comoção causada pelo suicídio de Vargas. A verdade é que no contexto dos anos 50 havia uma divisão ideológica no interior das forças armadas. De um lado, os nacionalistas que defendiam a necessidade de se criar um sistema econômico independente do capitalismo internacional tendo o Estado como regulador da economia; do outro havia os “entreguistas” assim denominados pelos opositores por defenderem menor intervenção do Estado e argumentarem que o crescimento do país dependia de maior abertura ao capital estrangeiro.
No início de seu segundo governo (1951-54) Vargas entregou o comando do Ministério da Guerra a um nacionalista, antigo tenente e presidente do Clube Militar: o general Estillac Leal. Porém, devido ao agravamento das tensões na conjuntura internacional, foi-se fortalecendo uma tendência de alinhamento com os Estados Unidos por parte da maioria do oficialato. A adesão ao anticomunismo acabou por angariar a simpatia dos “moderados” que começaram a se identificar com a pauta de partidos mais conservadores, em especial a União Democrática Nacional (UDN). A assinatura do Manifesto dos Coronéis contra a crise material e moral do Exército e o assassinato do major Rubens Vaz foram episódios que pesaram para que as forças armadas pensassem em ultrapassar os limites da legalidade e depor o presidente. Getúlio se suicidou antes.
Juscelino Kubitscheck também enfrentou problemas com as forças armadas ligadas a políticos conservadores desde que foi anunciada a sua vitória em finais de 1955, mas graças às manobras do general Lott que seria nomeado ministro da Guerra sua posse foi mantida. Os anos JK (1956-61) foram marcados pela estabilidade política, otimismo e crescimento econômico com os militares dispostos a garantir o regime democrático, preservar a ordem e combater o comunismo, ainda que houvesse entre eles oficiais nacionalistas que se aproximavam de ideias mais progressistas. Contra estes se insurgiam os radicais convencidos que só através de um golpe as instituições democráticas seriam preservadas. Não podemos esquecer a conjuntura da guerra fria e, sobretudo, a vitória da revolução cubana (1959) que atemorizava os setores militares com a possibilidade de implantação do comunismo na América Latina.
No início dos anos 60, durante o governo Jango, houve o fortalecimento da doutrina da segurança nacional gerada no seio da Escola Superior de Guerra (ESG) cujo objetivo seria treinar pessoal de alto nível para exercer funções de direção e planejamento da segurança nacional. A ESG chegou a ser apelidada “Sorbonne” pela excelência dos cursos, frequentados não só por militares, mas também por civis. Órgãos como o IPES (Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais) e IBAD (Instituto Brasileiro de Ação Democrática) que congregavam intelectuais conservadores e empresários articularam-se a ESG partilhando a idéia de que só um movimento armado poderia por fim à anarquia e combater o avanço do comunismo.
As reformas de base propostas por Jango atemorizavam a classe empresarial e as camadas médias. O comício da Central do Brasil a 13 de março no Rio de Janeiro e a Marcha da Família com Deus pela Liberdade em São Paulo alguns dias depois deram o tom à crise na qual se debatia o governo. Paralelamente, o apoio de Jango aos militares de baixa patente (marinheiros e sargentos) em sua luta pela melhoria de soldos e garantia de direitos provocaram os oficiais de alta patente, ciosos da hierarquia. Em fins de março, quando Jango veio ao Rio de Janeiro discursar numa assembleia de sargentos, o golpe já estava armado.
No dia 31 de março o general Olímpio Mourão Filho, com apoio do governador Magalhães Pinto, mobilizou as tropas sob seu comando sediadas em Juiz de Fora em direção ao Rio de Janeiro. No dia seguinte, as tropas comandadas por Amauri Kruel também se deslocaram do Vale do Paraíba em direção ao Rio. João Goulart, para evitar um conflito de maiores consequências, viajou para Porto Alegre e de lá para o Uruguai. Consumava-se o golpe. Urdido nas fileiras militares com apoio moral e financeiro das camadas médias, do empresariado nacional e do capitalismo internacional, o golpe civil-empresarial-militar (assim deve ser denominado) inaugurou no país uma ditadura cruel, formalmente encerrada em 1985. Quem viveu esse pesadelo sabe o perigo que nos espreita.
Construir Resistência publicou nesta quarta feira (31/3) o artigo de Marly Motta “Lembrai-vos de 37”, numa alusão direta à ditadura do Estado Novo (1937-45).* Pegando carona no excelente texto de Marly, eu acrescentaria: Lembrai-vos de 64! Nunca é demais recordar e narrar, especialmente para os mais jovens, os horrores vividos no país a partir desse golpe, cujos desdobramentos feriram as instituições democráticas e aniquilaram os direitos, a honra e a vida de tantos brasileiros. O recurso à memória nos fortalece, reafirma nossa identidade e nos impele à resistência.
Nota da autora
* No título de seu artigo, Marly Motta referiu-se a uma expressão usada no discurso do deputado Café Filho por ocasião da campanha de Vargas à eleição presidencial de 1950. A expressão também foi inspirada no título do livro “Lembrai-vos de 35”, de autoria do general Ferdinando de Carvalho em alusão à Intentona Comunista.