Meu amigo Marcelo Canellas está entre os jornalistas demitidos pela Globo. Canellas é reconhecido como o melhor texto da TV brasileira e o cara das grandes reportagens com abordagens humanistas.
Foi o repórter que apresentou ao Brasil, em 2001, sem firulas e sem pieguices, a fome que Lula iria combater a partir de 2003. Lucio Alves foi o cinegrafista da série.
Repórteres batem com a cara na porta de chefes nem sempre dispostos a ouvir, porque se incomodam com ideias alheias.
Sei da luta de anos de Marcelo para emplacar essa pauta, durante o governo Fernando Henrique, para realizar uma das grandes reportagens da TV brasileira.
O site Memória Globo conta:
“Ainda na primeira matéria, a equipe entrevistou a lavadeira Maria Rita Costa, de 51 anos, que sofria de desnutrição. A situação de saúde dela era tão ruim que a equipe da Globo teve que providenciar uma ambulância para levá-la ao hospital.
No dia seguinte à exibição dessa primeira reportagem da série, Fátima Bernardes leu uma nota dizendo que os moradores de Araçuaí, onde vivia Maria Rita, avisaram à emissora que, duas semanas depois de dar a entrevista à equipe da Globo, a lavadeira falecera. Maria Rita fora vítima de pneumonia e desnutrição aguda”.
Lula e Dilma derrotaram a fome, que Bolsonaro e os militares trouxeram de volta e aprofundaram com mais miséria e a disseminação de ódios e crueldades.
Redações perdem grandes jornalistas como qualquer outra área. Mas é triste saber que Canellas, o repórter que nos conduzia pela mão por onde entrasse, perde seu espaço na Globo no momento em que Lula volta e se dedica de novo a salvar as Marias Ritas e seus filhos.
Canellas não trouxe os famintos e miseráveis até nós em 2001. Ele nos levou até as casas deles.
Também foram demitidos pela Globo Eduardo Tchao, Flávia Jannuzzi, Luciana Osório, Mônica Sanches e o diretor do Fantástico Jorge Espírito Santo.
Vai se desfazendo, em meio à crise das organizações do setor, o que talvez seja a última geração da transição do jornalismo analógico para os espaços virtuais, sem que exista (e isso não é saudosismo, é realidade e já é história e memória) a chance de repetição do que eles fizeram.
Um modelo se despede. O jornalismo vai resistindo, com outras feições, mas não se enganem. As corporações de mídia não têm mais espaço nem paciência para lidar com esse tipo de gente. O jornalismo sobrevive, mas vai virar outra coisa.
(Abaixo, o link de trecho da entrevista a Pedro Bial em que Canellas conta como encontrou Maria Rita e como soube da sua morte.)
https://globoplay.globo.com/v/6837056
Moisés Mendes é jornalista em Porto Alegre. Foi colunista e editor especial de Zero Hora. Escreve também para os jornais Extra Classe, Jornalistas pela Democracia e Brasil 247. É autor do livro de crônicas ‘Todos querem ser Mujica’ (Editora Diadorim)