Frei Beto: “Brasil-Batismo de Sangue”

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Por Lindener Pareto – ICL

Assim como o Drummond, o Frei também é um Carlos que ouviu o anjo torto dizendo: vai ser gauche, vai ser esquerdo, canhoto na vida

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Passa das 13h30 no bairro das Perdizes em São Paulo. Devo encontrar o Frei às 14h. Algum tempo hesitei entre avisar que cheguei antes ou deixá-lo na tranquilidade do convento. Espero, na calçada, pelo horário combinado. O convento não é mais o colégio antigo. As linhas sóbrias do concreto armado de uma antiga garagem que virou edifício revelam janelões que guardam uma biblioteca de mais de 100 mil volumes. Observo de fora. Entre árvores e uma ou outra moto que passa, envio um áudio dizendo que já podíamos ir. Em pouquíssimos minutos, o Frei assoma no portão. Sóbrio, sereno, firme, grisalho. Tem uma sacola simples, um guarda-chuva e três livros na mão. Bem-vestido, camisa e sapatos elegantes, em forma. Já no carro, responde mensagens e envia textos para jornais do exterior, para Cuba. Em 2023 pegou um avião a cada 3 ou 4 dias. Entre os aposentos do convento e os corredores de avião, percorre o mundo. Conversamos sobre as disputas no seio da Igreja. Não nos conformamos com os tiranos que perseguem em nome de Cristo. Voltamos aos tempos de sua juventude, o cárcere, a ditadura. Me diz que, por ter passado anos na prisão, adquiriu um hábito que jamais abandonou: todos os dias, ainda em jejum, corre — parado no mesmo lugar — mais de uma hora, mantém a forma e a sanidade. Mente e corpo precisam saber que estão no cárcere. Precisam sobreviver. Ele é discreto, grave, comedido. Chegamos no estúdio. Um motorista, apressado, bate no retrovisor do nosso carro. O Frei não se altera. Lamenta, calmamente, o ocorrido.

Entramos. No estúdio o que se vê e o que se ouve é um narrador incansável. Memória prodigiosa, rigor com os fatos e conceitos. É um irmão leigo, dominicano. Compromisso com a verdade implacável dos fatos humanos. O Frei — na esteira dos historiadores — nos lembra aquilo que alguns muitos querem esquecer. Faz 50 anos (em 2024) que seu grande amigo, Frei Tito, tirou a própria vida em função dos traumas implacáveis da tortura e do cárcere. Os olhos do Frei guardam a dor do amigo e brilham de resiliência na esperança de que os humanos não mais se torturem uns aos outros. Em 2024, 60 anos da Ditadura Civil-Militar que redefiniu não apenas a trajetória daqueles Frades dominicanos no auge do arbítrio, mas que deixa ainda um rastro de sangue e uma ferida aberta que é a de um país inteiro. Nação que insiste em não curar seus traumas. Que esconde macabra e literalmente seus filhos e esqueletos em valas e armários. Os Stuart, os Vanucci, os Mariguella, as Zuzus, os Edsons, as Amelinhas, os Titos… os operários, as mulheres. O Frei, sereno, mas sempre indignado, não quer esquecer nada, não pode. Sua memória é tão prodigiosa quanto a de Funes, tão cheia de êxtase no amor e na esperança quanto a de Teresa d’Ávila. O Frei, digno das expressões mais intensas de Bernini, é uma fortaleza, é uma lança política rasgando a maldade das elites e dos ditadores, é uma arma afetuosa e quente na opção pelos pobres, oprimidos e humilhados de hoje de ontem. O Frei é calmo, mas tem pressa. Quer dizer ao Presidente para ajudar mais uma vez todas as gentes, seu coração tem o formato do mapa de Cuba, lembra das lições e da resistência de Fidel, lembra e denuncia o bloqueio genocida da Casa Branca.

O Frei tem pressa, foge do assédio dos fãs, administra bem a “sociedade do espetáculo”, mas prefere evitá-la. O Frei é um intelectual público e engajado. Quer que seus mais de 74 livros sejam lidos, quer que o povo brasileiro conheça a história dessa terra, desse arbítrio, a fim de superá-lo. Seu coração é calmo, é generoso e forte. Bate há 80 anos pelo proletariado do mundo. O Frei é grave, tem outros compromissos. O Frei é daqueles espíritos que nos lembram efetivamente os compromissos mais importantes do evangelho: amor, comunhão, afeto, liberdade. A luta do Frei é nossa “Rosa do Povo”. Assim como o Drummond, o Frei também é um Carlos que ouviu o anjo torto dizendo: vai ser gauche, vai ser esquerdo, canhoto na vida. O Frei é um patrimônio do Brasil, das Marielles aos Malês, dos Canindés aos Krenaks, ele é o povo, é imigrante, é peregrino, é penitente resistente. Sabe que a História do Brasil, desde 1500, é um permanente batismo de sangue. É nosso Bartolomeu de Las Casas, outro dominicano ilibado. O Frei é Libânio, carrega dos calvários e das montanhas de Minas Gerais o Christo. O Frei é Carlos Alberto Libânio Christo, o Frei é Betto, o Frei Betto. Um revolucionário brasileiro no mundo e para o mundo. Celebremos sua vida, sua luta, sua fé e sua força! Elas são também as nossas. Não à Ditadura, não ao 1 de abril (1964) e não ao 8 de janeiro (2024), nunca mais, ditadura nunca mais!

Lindener Pareto

Lindener Pareto é Professor e historiador. Mestre e Doutor pela FAU-USP. Professor de História Contemporânea e Curador Acadêmico no Instituto Conhecimento Liberta (ICL). É apresentador do “Provocação Histórica”, programa semanal de divulgação científica de História e historiografia nos canais do ICL.

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