Forças Armadas se descolam do bolsonarismo, diz pesquisador

Paulo Cunha é autor de Militares e Militância, com 2a. edição publicada pela Editora Unesp

Reportagem e foto – Assessoria de Comunicação do CEDEM, da Unesp

Paulo Ribeiro Cunha, docente da Faculdade de Filosofia e Ciências (FFC) da Unesp, câmpus de Marília, é Livre Docente em Ciência Política pela Unesp e Doutor em Ciências Sociais pela Unicamp. Atualmente desenvolve o pós-doutorado no Instituto de Estudos Estratégicos (INEST), da Universidade Federal Fluminense (UFF). É membro e colaborador de diversos institutos e núcleos de pesquisa, entre eles o Instituto Astrojildo Pereira (IAP); Núcleo de Estudos de Ideologias e Lutas Sociais (NEILS) da PUC-SP; Laboratório de Estudos sobre Militares e a Política (LEMP) da UFRJ; Comissão de Altos Estudos do Centro de Referência Memórias Reveladas do Arquivo Nacional. Assessorou a Comissão Nacional da Verdade (CNV) entre 2012 e 2014. Foi responsável por entregar ao CEDEM a coleção da Associação Democrática Nacionalista de Militares (ADNAM) . É autor e organizador de vários livros. Um deles é Militares e Militância, uma relação dialeticamente conflituosa, cuja segunda edição foi publicada pela Editora Unesp neste 2021.

Na entrevista a seguir Paulo Cunha analisa a presença de militares no governo de Jair Bolsonaro e também fala sobre Militares e militância.

CEDEM – A segunda edição de Militares e militância foi revista e ampliada. Nela o senhor escreve um preâmbulo no qual foca o papel assumido pelos militares no governo do Presidente Jair Bolsonaro (2019 – 2022). São cerca de seis mil oficiais em diferentes áreas do governo. Qual é esse papel?

Paulo Cunha – Inicialmente, o preâmbulo reflete uma leitura de que há uma tradição de setores militares se arvorarem enquanto poder e tutela da sociedade e da nação, desta vez, estimulada por um mau militar, como disse Ernesto Geisel [presidente militar 1974 – 1979] sobre Bolsonaro que, por diversas razões e imponderavéis fatores acabou chegando, pelo voto, à Presidência da República. Essa linha de argumentação expressa também a presença de um setor militar, com imbricações nas Forças Armadas, em retomar certo protagonismo há muito perdido, ou melhor, anestesiado desde a redemocratização. Em tese, essa ala militar exerceria o poder de fato, tendo à frente o caricato capitão presidente. Não contavam com o deslumbre desse personagem, cuja liderança política na sociedade era inicialmente reconhecida por estes setores militares, mas que sucumbiu. Revelou-se sua mediocridade no exércicio da Presidência e, pior, gradualmente foi contaminando a instituição militar que, por osmose, acabou sendo associada ao governo e a seu projeto, ou falta dele, salvo a reeleição. Na verdade, entre as três forças que dão sustentação a esse governo – uma ala militar, o capital financeiro, tendo à frente Paulo Guedes, e a ala ideológica, muito influenciada pelo pseudo filósofo Olavo de Carvalho –, nunca atuaram enquanto uma orquesta harmônica e o maestro em questão, em vez de agregar, aprofundou essa falta de sintonia. E com ela o desastre político e econômico que contamina os demais militares da ativa e sua boa imagem junto a sociedade. Afinal, soma-se a esse fator de crise sanitária, a crise ambiental, a corrupção na família Bolsonaro e suas ligações com as milícias no entorno do Presidente, bem como movimentos políticos desastrosos, como trazer o centrão para o governo. Politicamente, o grupo deve ampliar tensões e a governabilidade, dada o apetite por cargos e verbas, e que seguramente vão apresentar uma fatura maior a cada votação, e tudo indica, vão procurar ocupar parte dos cargos que hoje têm à frente esses militares. Pesquisas recentes revelam que os militares não são melhores como gestores, como advogavam, e o desastre à frente do Ministério da Saúde por um general da ativa entre outros oficiais, seguramente vai contribuir para o desgaste da instituição junto a população. Isso por um lado, mas por outro, analiso e argumento nesse preâmbulo que muito provavelmente Bolsonaro não chega ao final do mandato.

CEDEM – No dia 29 de março, o Presidente substituiu o general Fernando Azevedo e Silva do comando do Ministério da Defesa pelo general Walter Braga Netto. E no dia 30, véspera do golpe de 1964, os comandantes das três Forças Armadas – Marinha, Exército e Aeronáutica – deixaram seus cargos. Como o senhor avalia esse movimento?

Paulo Cunha – Concretamente, podemos inferir como hipótese que a instituição se descolou do governo e essa ala militar tem no momento a missão de salvar o barco, buscando uma saída honrosa para o descalabro político e administartivo agravado pela pandemia. Já havia insatisfação dos generais, muitos deles constrangidos com a perda de prestígio do Brasil no cenário internacional – considerado um pária, condição vista orgulhosamente pelo atual governo, ou mesmo as muitas menções e atitudes de subserviência, entre outras, como as ameaças de entrega da Amazônia aos Estados Unidos, somente para citar uns exemplos. Mas nessa crise, tudo indica que Bolsonaro tentou e não conseguiu apoio militar para decretar o Estado de Sítio ou o Estado de Defesa, medida correlata, que sempre esteve entre seus objetivos para contrapor alguns governadores, aliás, coerente com seu passado, pois se trata de um personagem distante de qualquer afeição com a democracia. Uma hipótese nada improvável. A ação sinalizava que havia em curso um movimento grevista de policiais militares, após a morte do soldado Wesley Góes na Bahia, e nessa linha, bolsonaristas em vários estados pretendiam deflagrar uma greve, tendo apoio público de deputados da base do governo, especialmente em unidades da federação governadas pela oposição. O movimento de saída desses generais e do então ministro Fernando Azevedo e Silva acabou criando um fato político que abortou aquela iniciativa que, se bem sucedida, daria condições de Bolsonaro atuar a seu bel prazer. Avalio que, nesse momento, o Exército em particular, mas também as demais Forças, se posicionaram enquanto um Partido Militar, para lembrar a clássica tese de Rouquié, se descolando do governo e tentando a todo custo não mais ter a imagem da instituição associada ao Presidente. Insistentemente, Bolsonaro não somente tenta vincular sua presidência aos militares, com ameaças a democracia, basta ver a recorrente frase ‘meu exército’.  Nessa altura do campeonato, a frase soa mais como bravata. A ala militar, que ainda está com o governo – já que houve fissura desde a saída do prestigiado General Santos Cruz, entre outros generais – ficou com a batata quente em equacionar uma saída política para essa crise que tem um nome, rosto e endereço: Jair Bolsonaro.

CEDEM – O senhor vê algum risco de o governo Bolsonaro romper com a ordem democrática tendo em vista sua constante retórica de ameaças?

Paulo Cunha – Não vejo e por várias razões. O governo se fragiliza a cada dia, e a autoridade do presidente é exposta ao rídiculo quando um general Luiz Eduardo Ramos, lotado na antessala presidencial, admite publicamente que tomou vacina contra Covid-19 escondido (aliás, não foi o único), sem falar das suas muitas tentativas em recorrer a Lei de Segurança contra jornalistas e opositores. Felizmente a Lei está em vias de ser revogada pelo Parlamento. Tudo denota fraqueza e não força. Por outro lado, não há lideranças políticas entre os militares, como era o caso no pré-1964; aliás, repito, Bolsonaro perdeu completamente a liderança, se é que ela foi reconhecida concretamente em algum momento. Muitos militares dessa ala acreditavam que controlariam Bolsonaro e isso não aconteceu. A crise se acentuou, agravada pelo fato de não haver rumo ou projeto de nação. Inevitavelmente, vemos setores civis batendo na porta dos quarteis, ou em arroubos nas ruas e nas redes sociais pedindo intervenção militar. Com sua retórica, Bolsonaro permitiu que esse grupo reacionário emergisse, expondo seu histórico atraso, preconceito e intenções. Hoje deve ser algo de, no máximo, 15% da população ainda fiel ao Presidente. Mas um setor considerável, que apoiou Bolsonaro, reavalia criticamente sua opção, tanto é que emerge no debate político a alternativa de uma Terceira Via. Vale dizer que esse novo Macarthismo até foi bem sucedido inicialmente ou, antes das eleições, mas já não contamina da mesma forma e, por paradoxal que seja, a Covid-19 é que garante uma sobrevida ao governo, na medida que inibe aglomerações e uma efetiva resposta da população nas ruas. Quanto aos militares da ativa, muito provavelmente o desastre do governo Bolsonaro e, mais ainda, as consequência nefastas de uma ausência de política governamental, aguçada pela pandemia, contribuirão para abortar futuras pretensões de se arvorarem enquanto um poder de tutela na sociedade. Uma lição da história para a história.

CEDEM – Vamos falar um pouco sobre o lançamento de seu livro. Quando se pensa em Forças Armadas e militares, logo surge a imagem de um universo em que impera um ordenamento rígido conservador, habitado por seres superiores com comandados que não fogem às ordens. Sua obra, Militares e Militância, aponta ao leitor que nesse universo existem vozes dissonantes de pensamento de esquerda. Poderia falar brevemente sobre essa relação conflituosa?

Paulo Cunha – Incialmente, o livro traz à tona uma tese de que as Forças Armadas sempre foram atores políticos. Na obra, defendo a opinião de reconhecer o direito dos militares se manifestarem, mesmo na ativa. Atuarem politicamente desde que respeitando o Estado Democrático de Direito. Não significa partidarizar as instituições ou levar os partidos para dentro dos quarteis, mas reconhecer que são cidadãos e devem exercer o diteito à cidadania do mesmo modo que outras categorias, inclusive, tendo o direito de se associarem e de se manifestarem no debate político sobre as questões nacionais. Mas para isso, é preciso reconhecer suas várias tendências e, que esse direito, não seja privilégio somente de alguns generais ou do comando, direito este que pode ser exercido sem prejuízo das suas missões. Nesse universo, no livro trago uma reflexão de que as Forças Armadas não compõem um bloco monolítico, há tendências internas e sempre houve uma esquerda militar, especialmente no pré-1964, cujo guarda-chuva conceitual era bem amplo: comunistas, democratas e legalistas atuantes e influente até o golpe de 1964. Esse conflito, não necessariamente precisa resultar em golpe, como muitos advogam. Pelo contrário, é positivo para a democracia e temos vários exemplos correlatos em outros países, onde o direito de greve de policiais é reconhecido. Em alguns deles, um direito também reconhecido aos militares das Forças Armadas. A segunda parte do livro valoriza essa reflexão na história do Brasil até 1945, mostrando dezenas de movimentos militares cuja pauta poderia ser vista contemporaneamente como cidadã, na medida em que versava sobre soldos, condições de trabalho, estabilidade. Na agenda política, buscava a presença, a legitimidade e o reconhecimento de sua atuação na construção de uma nova sociedade para o país ou mesmo na defesa da legalidade democrática. Uma pauta que é, sobretudo, contemporânea.

 

CEDEM – O livro aborda a questão dos militares expulsos das Forças Armadas no golpe de 1964 por apoiarem o movimento em prol de João Goulart. Esses militares lutaram posteriormente pela redemocratização?

Paulo Cunha – É importante destacar que o livro dialoga com a Comissão Nacional da Verdade (CNV) que bem demonstrou em seu relatório que os militares (inclusive policiais), enquanto categoria foram, proporcionalmente, os mais atingidos pelo golpe civil– militar de 1964. Aliás, esse dado também se apresenta quando resgatamos os exilados. Porém, somente 3% optaram pela luta armada contra a ditadura e alguns fazem sinceras autocriticas pela opção. Na verdade, a enorme maioria atuou tendo em vista a anistia, a redemocratização e a reintegração, bem como reincorporação às Forças Armadas, atuando politicamente por meio de muitas entidades que ainda existem, como a Unidade de Mobilização Nacional pela Anistia (UMNA), Entidade Nacional dos Civis e Militares Aposentados e da Reserva (ACIMAR), Associação Democrática e Nacionalistas de Militares (ADNAM) em conjunto com setores da sociedade civil na luta pela democracia. Foram parcialmente bem-sucedidos, embora nunca conseguissem o direito de retorno às Forças Armadas. Após longa ação judicial, um pequeno grupo de policiais, em São Paulo, foi reintegrado, por pouco tempo, na época do Governo Montoro. No quesito anistia, está havendo retrocessos com o atual governo. Muitos estão sendo desanistiado ou tendo perda de direitos, especialmente os praças.

CEDEM – As Forças Armadas já admitem em suas fileiras militares que pensam além da doutrina?

Paulo Cunha – Na verdade, elas não admitem que possa existir internamente certa pluralidade. Em tese, não há uma política de obstacularizar a entrada de candidatos de esquerda, entretanto, há constragimentos daqueles que não evocam o mesmo ideário político corporativo e, em alguns casos, houve sim sutis perseguições, especialmente a Associação de Praças do Exército Brasileiro (APEB). Há relatos de praças candidatos nas eleições que sofreram perseguições, alguns também, por opção sexual. A questão muitas vezes foi judicializada e trato parcialmente no livro, mas houve casos de transferências com prejuízos nas carreiras. É importante salientar que as Forças Armadas são ideologicamente conservadoras, como reflexo também de uma sociedade que é conservadora e tem dificuldades em lidar com sua história, especialmente uma história que foi construida também por militares de prestigio, como Luiz Carlos Prestes ou Apolônio de Carvalho, que em algum momento fizeram uma rotação à esquerda, dignificando as instituições e a  história da nação. O ambiente interno não é oxigenado politicamente para uma pauta ou admissibilidade de uma reflexão que permita um debate sem maiores constrangimentos, por essa razão, um ponto importante que deve ser valorizado é a reformulação curricular nas academias militares. Basta um exemplo, a Coluna Prestes/Miguel Costa é estudada em várias academias militares do mundo, mas não nas nossas academias, salvo enquanto tática. Distante também dos currículos é a Revolta da Chibata ou a repressão e tortura aos militares da Força Aérea Brasileira (FAB) nos ano 50. Há muito que aprender com essa história, mas o importante é que a história das Forças Armadas não deve ser confundida com a trajetória dos torturadores ou mesmo a corrupção praticada por alguns desses setores no regime militar. São poucos os militares torturadores, que maculam a história das Forças Armadas, como demonstra o relatório da CNV. Seria de bom tom que essas instituições pedissem desculpas para a nação, posicionamento que as desvincularia de militares cujo ‘heroismo’ é ressaltado pelo atual Presidente, alguns setores militares da ativa e, principalmente, os da reserva. Pedir desculpas seria um passo para se eximir da responsabilização ou do papel de alguns de seus membros, uns até condenados pela justiça como torturadores, embora o ato também reconhecesse suas responsabilidades, na medida em que muitas torturas foram comentidas em suas unidades. Seria um passo enorme para aproximar as instituições militares da nação e, a partir dela, construir pontes de diálogo efetiva com a sociedade e sua verdadeira história.   

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