Quase um século depois, um documentário de 1918 sobre a Amazônia foi redescoberto. A notícia foi anunciada pelo jornal britânico The Guardian, que contou a história em reportagem de Constance Malleret. “Amazonas, maior rio do mundo”, do diretor Silvino Santos, havia ficado conhecido como “santo graal” do cinema mudo brasileiro – uma joia de registro sobre a vida na Amazônia de cem anos atrás e da história do cinema nacional.
O registro, que “emerge das profundezas de um arquivo tcheco”, havia sido roubado de Silvino no mesmo ano em que foi produzido. Analisado por especialistas na Itália e no Brasil, a obra teve sua autenticidade verificada. O filme estava desaparecido desde aquela época, sem que que pudesse ser exibido no Brasil. O negativo foi roubado por um associado de Santos, Propércio de Mello Saraiva, que estava negociando a venda internacional do documentário no início do século passado.
Professor de artes visuais da Universidade Federal do Pará, em Belém, Savio Stoco é estudioso da obra de Silvino Santos. Ele não acreditava mais ser possível encontrar os registros. “É basicamente um milagre”, afirmou ao Guardian. “Não tínhamos a menor esperança de que este trabalho fosse encontrado um dia”.
No arquivo Národní filmový, em Praga, o filme estava catalogado como produção dos Estados Unidos, com data posterior de 1925. Ao assistir, um especialista em cinema mudo teve certeza de que se tratava de uma produção anterior à data registrada e longe de ser produzida por algum norte-americano naquele momento.
“Dentro de segundos, eu sabia que não era 1925, era muito mais cedo, e certamente não tinha nada a ver com nada que alguém nos EUA pudesse ter feito”, diz Weissberg, que é diretor do festival de cinema mudo Pordenone da Itália, onde o documentário foi exibido. Outras exibições estão planejadas para o final deste ano na República Tcheca e no Brasil, embora a exibição do documentário levante questões sobre o olhar colonialista de Santos.
Para Sokos, trata-se de um registro importante que impacta pela construção do diretor e o trabalho de linguagem no gênero. “Mistura diferentes dimensões do gênero documentário em uma narrativa muito agradável para o espectador”, define.
“É claro que é um filme marcado pela perspectiva da época e por seus financiadores, que eram membros da elite comercial de Manaus”, diz Stoco, Ele destaca também que o filme tem ênfase no potencial comercial da região, além de registrar povos indígenas sem reconhecer os horrores que enfrentaram.
Para realizar o filme, Santos havia sido financiado por um barão peruano de borracha, explica o professor. “Não podia falar sobre as atrocidades que estavam ocorrendo”, defende.
O filme apresenta imagens exuberantes e fascinantes de paisagens e habitantes da floresta amazônica, registros que, por si só já seriam raros, ainda que tivessem sido preservados.
Dada a pouca produção documental da região nesta época, a peça é uma fundamental para compreender o cinema brasileiro, além dos registros raríssimos que o filme apresenta, incluindo algumas das primeiras imagens em movimento conhecidas do povo indígena Witoto, que chegou a ser escravizado e forçado a sair da região em que viviam.
Os Witoto habitam, hoje já em menor número de habitantes, a região conhecida como Médio Solimões, por onde passa o caudaloso Rio Solimões. Atualmente, a região enfrenta um período de seca severa causada pelo fenômeno climático conhecido como El Niño.
Em imagem registrada uma semana após a revelação da descoberta do filme, o fotojornalista Lalo de Almeida registrou um pescador ribeirinho atravessando um trecho do leito do rio a pé – a imagem lembra alguém atravessando um deserto. É chocante.
Se o filme foi produzido como uma forma de exaltar a exploração comercial da região, hoje renasce como um registro importante que reforça a importância de combater a exploração do “potencial amazônico” com prejuízos a povos originários, ribeirinhos, fauna e flora. Todo o bioma está ameaçado. As grandes cidades próximas também já sentem os efeitos da exploração desenfreada, que acelera efeitos climáticos e intensifica os prejuízos.
Pouco antes de sua morte, em 1969, o diretor escreveu suas memórias em um diário e lá se expressou pela última vez sobre o filme. “Ainda está na órbita dos planetas”, definiu.
Ainda segundo a reportagem, o documentário, roubado por Propércio Saraiva, circulou com grande aclamação na Europa por alguns anos, mas já em 1931 todos os vestígios dele haviam desaparecido. Apesar do destaque na imprensa internacional e da grandeza dessa descoberta, a notícia não foi repercutida por grandes veículos brasileiros.
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