Este é um tema polêmico. É daquelas causas que escolho para tomar porrada, da direita e da esquerda. É a síndrome de Verlaine.
Mas como detrator não paga salário, vamos lá mais uma vez. Afinal, o sábio Vicente Matheus nos ensinou: quem sai na chuva é para se queimar.
Como bom seguidor da Teologia da Libertação, aprendi desde cedo a respeitar todas as pessoas, todas as suas opções de interação social e todos os seus esforços de sobrevivência.
São Gonçalo nasceu no Século 12 e até hoje é o padroeiro das prostitutas. Ele era violeiro, promovia danças e as atraía para as boas obras, em favor delas próprias e dos desfavorecidos.
Repetia o carpinteiro de Nazaré, que nunca cultivou preconceitos, e via todas e todos como iguais. Esse é o cristianismo raiz, e não o cristianismo modinha, moralista, hipócrita e repressor, de boa parte dos evangélicos.
E foi Santo Agostinho quem definiu melhor a condição em seu tempo. Ele não dita apologia da atividade, mas sentencia: “banindo as prostitutas, introduzireis por toda parte a desordem das paixões”.
Há uma vasta coleção de contribuições das prostitutas ao rito civilizatório na cidade de São Paulo. Foram elas que ensinaram toscos coronéis e rústicos barões do café a utilizar talheres, a entender um Rousseau, a apreciar a arte de um Rafael, a libertar um escravizado e, sim, a respeitar os direitos das mulheres.
Foi o caso das famosas irmãs Colibri, promotoras de refinados eventos culturais no Palais Élégant. Foi o caso da famosa Madame Sanches, muito culta, do Palais de Cristal, retratada como Madame Pommery, na valiosa obra literária de Hilário Tácito.
No Maxim’s, a homarada de ideias curtas ia se iluminar com Salvadora Guerrero. O lugar, aliás, é o cenário do romance “O Mistério do Cabaré”, de Amando Caiuby.
Sei dessas coisas e de muitas outras porque estudei a saga da noite paulistana desde 1554, em bibliotecas e arquivos históricos. Alguma coisa desse material compilado está em um volume lançado e esgotado em 2004, acerca do qual concedi uma entrevista no extinto Programa do Jô.
Em 1993, em O Globo, eu produzira uma série de reportagens de “imersão” na grande cidade. Eram semanas, até um mês, em dedicação à vivência dos dramas ocultos da urbe.
Já exibi nas redes sociais minha reportagem sobre o Treme-Treme, na beira do Tamanduateí, onde morei por densos e tensos dias. Agora, relembro as reportagens da especial sobre as prostitutas do paredão da Estação da Luz.
Elas eram, na época, as profissionais de Eros em situação mais precária. Ganhavam pouco, tinham que entregar parte do apurado para policiais, sofriam com diversas doenças (não somente DSTs) e ainda eram atormentadas pela reprovação social.
Passei uma quinzena ali, conversando de coração aberto com elas, exercitando a empatia, investigando motivos, perscrutando a psiquê do amor pago, imaginando as esperanças possíveis.
O profissionalismo não exige renúncia à generosidade. Posso dizer, portanto, que fiz amigas ali. Ouvia as agruras de uma, acompanhava outra até seu cortiço. Tempos depois, ainda comprei uns medicamentos e os entreguei a moça enferma e necessitada.
Tomei-me de grande entusiasmo quando, em 2012, o gentil companheiro Jean Wyllys, do PSOL, apresentou no Congresso o Projeto de Lei nº 4.211/2012, apelidado de Lei Gabriela Leite, em homenagem à virtuosa figura que tanto lutou pelo direito das mulheres do bem carinhoso.
Vale dizer que Gabriela (1951 – 2013), foi uma intelectual de primeira, socióloga formada pela USP, que, por decisão própria, exerceu por anos o ofício de agente do amor libidinoso, atuando em São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte.
No Rio, em 1992, ela fundou a Ong Davida, organização dedicada a promover a cidadania das prostitutas, eliminar estereótipos, obter o reconhecimento legal da atividade e garantir melhores condições de trabalho para as profissionais. Sua ideia era constituir um debate amplo sobre a função social desse serviço, e não tratar a prostituição apenas como recurso de mulheres e homens em situação de pobreza.
Em 2005, Gabi idealizou a grife Daspu, para brincar com a grife Daslu, a então conceituada loja de artigos de luxo. Em 2009, lançou o livro “Filha, mãe, avó e puta: a história de uma mulher que decidiu ser prostituta profissional”, obra que derruba inúmeros mitos sobre a atividade e revela os benefícios da psicologia ativa das artes eróticas.
Enfim, Gabriela foi duramente criticada por determinados setores do feminismo brasileiro. E esse ódio militante se estendeu ao próprio parlamentar propositor. Empatia zero. Sensibilidade social nenhuma. Sororidade inexistente. Lacração autoritária máxima.
Nesse segmento, brotaram vozes de “esquerda” que clamaram pela captura e encarceramento das mulheres que praticavam a atividade durante a Copa do Mundo de 2014 e a Olimpíada de 2016. Fogo “amigo” a incentivar a opressão por meio das forças fardadas.
O PL Gabriela Leite propunha que as profissionais teriam acesso a direitos previdenciários e garantias de segurança e saúde. A ideia era de oficializar uma relação de trabalho, e não de emprego. Não teriam, portanto, carteira assinada, tampouco deveriam obedecer a um superior ou chefe.
Era uma forma de coibir o rufianismo, a cafetinagem e o aliciamento, ou seja, todos as sistemas de exploração de outra pessoa para a obtenção de vantagem, benefício ou lucro. Seria um forma de estabelecer o pavimento da lei sob as profissionais vulneráveis, protegendo-as das garras do capital criminoso do varejo.
Bombardeado pela esquerda e pela direita, o PL nunca prosperou. Na linha de frente da interdição, a bancada evangélica. Na Comissão de Direitos Humanos e Minorias, o deputado Pastor Eurico (PSB-PE) emitiu parecer que indicava rejeição à demanda.
Em janeiro de 2015, o projeto foi arquivado. Jean Wyllys persistiu e conseguiu o desarquivamento, no mês seguinte. Quatro anos depois, no entanto, ainda na mira do farisaísmo militante e parlamentar, ocorreu novo arquivamento, nos termos do Artigo 105 do Regimento Interno.
Os debates em torno do assunto, no entanto, foram bastante proveitosos e elucidativos. As militantes sempre deixaram claro que o objetivo não era produzir uma “indústria do sexo”, conforme argumentavam os deputados conservadores, mas justamente coibir a nociva massificação comercial da atividade, bem como desmantelar a máquina de domínio machista e patriarcal das mulheres vulneráveis.
Em uma época de retrocessos, especialmente no campo da moral do corpo e da expressão da libido, será difícil retomar a causa justa das prostitutas. Seguem, assim, sofrendo com a corrupção policial, com os machos exploradores e com os engenhos do crime organizado, desprotegidas e desprezadas. Joga-se ainda a pedra na Geni. Aí, penso eu, cá com meus botões: palavrão é filho do Ustra e não filho da puta.
Quase trinta anos depois, ainda me lembro de Silvia, que tinha receio de andar sozinha pelas ruas do Bom Retiro, que no quartinho bem arrumado mantinha uma cama de alvenaria para evitar rangidos. Ela que gostava de bonecas, de crianças e de café com bolo. Na época, já era uma veterana, de pele desolada no mapa dos vincos, mas seguia a vida com a leveza possível. Gabava-se de conversar e confortar tantos trabalhadores feios, abandonados ou apenas desencantados da vida. Valorizava o amor compartilhado com todos, porque o destino ainda não lhe enviara a alma gêmea.