Por Virgilio Almansur
Com garbo exultante ouço “operadores do direito” — e juízes! —, na aplicação da lei, se referirem como exemplo necessário e exemplar, quando uma mãe que rouba miojo para as suas 5 crianças de 3 a 8 anos, ter de cumprir rigorosamente a pena sem nenhuma atenuante.
“A sociedade precisa de exemplos!”, é a máxima que usa a juíza do caso do furto de uma coca-cola de 600 ml, dois pacotes de macarrão instantâneo miojo e um pacote de suco em pó tang em um supermercado da Vila Mariana, zona sudeste da capital paulista.
Ouvi ainda algo como: “… Onde já se viu ser leniente na aplicação de uma lei??? Imagine todo mundo roubando R$21,69!!! Os supermercados irão à falência!!!” Uma boutade dos nossos tempos rachados…
O caso, na realidade, é exemplar como muitos outros que colocam o aparato cerceador como exemplo a ser seguido. Muito mais quando o que vemos é o espírito casa-grandense desfrutando, com júbilo e gozo, a supremacia sobre o hipossuficiente senzalês caçado com pompas feéricas. Datenas dão ibope…
Não sei onde, verdadeiramente, encontrar a pobreza nesse exemplo. A letra da lei, em casos semelhantes, encontrou respostas que o próprio guardião das leis, nosso STF, já reconheceu como ilegal a prisão de quem furta para saciar a fome; entendo todas as nuances de um CP/CPP/CF. Entendo também o estado de necessidade e o princípio da insignificância…
“Roubei porque estava com fome” pode ser “arranjo” do ladrão… No entanto, a fome, um imperativo que nos acompanha — e com o valor irrisório subtraído —, além das implicações das crianças “envolvidas”, aponta àquilo que a própria defensoria pública argumentou ao pedir o relaxamento da prisão da mulher, “visto que ela tem cinco filhos com idades de 2, 3, 6, 8 e 16 anos”.
“O Código Penal considera em estado de necessidade quem pratica o fato criminoso para salvar de perigo atual (que não provocou por sua vontade, nem podia de outro modo evitar) direito próprio ou alheio, cujo sacrifício, nas circunstâncias, não era razoável exigir-se. Num país que as pessoas passam fome não se pode prender uma acusada por furtar alimentos para a sua alimentação, lembrando que a indiciada possui 5 filhos menores de idade”, afirmou o defensor que teve suas argumentações rechaçadas pela juiza que ainda “carregou” na condenação.
Praticamente, desde o início dos 2.000, a norma vigente admitida pelo STF procurou orientar os juizes a arquivarem casos em que sobressaia a necessidade premente (FOME), em virtude da insignificância provada aliada à pequena ofensa e diminuto prejuízo à vítima do furto.
A pobreza em tela parece ter lugar na escrita despachada, nos argumentos inflamados que ao Estado-Juiz é permitido desenvolver. Num ambiente em que nossos magistrados compõem rimas baratas, poetam desabridamente, costuram capítulos e versículos bíblicos para fundamentarem a insignificância, é possível que o lugar famélico seja outro… Uma última flor do lácio. Inculta, às vezes bela…
Virgilio Almansur é médico, advogado e escritor.
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