Por Miriam Waidenfeld Chaves
Fascinado pela selva amazônica, Humboldt nunca se esquecera de sua expedição aos Andes, em 1802. Sua vegetação, úmida, espessa, carregada de folhagens gigantes, flores exóticas, frutos estranhos e animais esquisitos, nunca haveria de sair de sua memória.
E se de imediato, ao adentrar nas estepes russas, em 1829, sentiu saudades daquela exuberância tão explicita, aos poucos, conforme ia se aproximando das montanhas Altay, na distante Sibéria, se deu conta da beleza de terras tão inóspitas.
Assim, a vegetação mirrada e rasteira da gramínea russa, carregada de vazios e silêncios, finalmente, surpreendeu Humboldt que, a partir daí, se apaixonou por esse reino celestial, conforme suas próprias palavras[i].
Parece-me ser essa a sensação que sinto quando me deparo com o cerrado, pois apesar de causar um efeito único aos olhos de quem o admira, sua beleza improvável não é imediatamente percebida.
Portanto, defendo a hipótese de que o cerrado é para os iniciados. Equivale a uma boa taça de vinho tinto de safra raríssima que devemos apreciar aos poucos. Sem pressa ou afobação.
De imediato, há que ressaltar o protagonismo tanto de seu céu azul quanto de seu sol amarelo. Únicos, são eles que, através de uma luz direta e sem pudor, conseguem produzir cenário sem igual. Não tenho dúvidas, de que seria essa luz abrasante a responsável por ele existir tal como se apresenta diante os nossos olhos.
Depois dessa constatação, caro leitor, esse torrão estrambótico já o terá fisgado e você não o abandonará jamais. Finalmente, terá entendido que ali bem a sua frente encontra-se um pedaço de terra excepcional pronto para ser desbravado.
Descobre-se, então, um mundo encantado de cores difícil de avaliar. São marrons, roxos, laranjas, brancos, vermelhos e rosas. São matizes de verde e amarelo, que conforme a estação do ano, se desdobram em tonalidades sutis que fariam com que Monet transferisse sua Giverny para o Alto Paraíso.
São árvores raquíticas de troncos e galhos retorcidos, verdadeiras esculturas, escondendo raízes 10 vezes maiores do que seus dosséis, que se juntam às abundantes quedas d’águas e cachoeiras que, por sua vez, deslizam sobre rochas, pedras e pedaços de terras queimadas, que cismam em renascer.
São saíras, sabiás, pipiras vermelhas, azulãos, saracuras, tucanos e araras piando e voando de galho em galho. São saruês, tatus, quatis, teiús, cachorros do mato, tamanduás, lobos guará, jaguatiricas, quatis, macacos-prego zanzando de um lado para outro. São a flor de pequi, o chuveirinho, o ipê, a canela-de-ema, a umburuçu, a lobeira, o pau-terra, a orquídea e o algodão do cerrado colorindo a terra e o ar. São jatobás, jequitibás, cagaitas, ingás, patas-de-vaca, araticum, pequis crescendo para cima, para o lado e para baixo, num movimento só.
É uma alegria sem fim. É um alvoroço constante que enche o meu coração de felicidade.
Essa é a minha sensação toda vez que me deparo com essa terra abençoada, mas sofrida. E logo, que ali me encontro, me pergunto: que caminhos estão reservados para mim, nesta viagem? Que flores eu descobrirei? Que pássaros fotografarei? Quantos quilômetros eu andarei? Em que cachoeiras eu nadarei?
Nota da Autora
WULF, Andrea. A INVENÇÃO DA NATUREZA. A vida e as descobertas de Alexander Von Humboldt. São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2011.
Miriam Waidenfeld Chaves é contista e professora aposentada da UFRJ.