Esta foi a eleição mais democrática ocorrida após as Diretas Já!

Por Daniel da Costa 

O movimento pelo retorno do Brasil à democracia, na década de 1980, e que inspirou um amplo movimento popular denominado “Diretas Já!”, crescia sobre o ocaso do regime de ditadura militar que completaria duas décadas de permanência no poder.

O momento era de um sentimento geral de que a hora da ditadura havia chegado ao fim. Era um sentimento geral descaracterizado ideologicamente, pois cobria uma frente ampla de matizes ideológicos políticos que se uniam em função de um sentimento comum: volta à democracia, às eleições pautadas no sufrágio universal livre. Tudo dentro dos marcos da democracia formal representativa liberal clássica.

Mas as garras da armadilha liberal não perderiam tempo. E, na forma do neoliberalismo, iriam se mostrar logo após os primeiros movimentos de estabilidade democrática conquistados a partir da década de 1990, com a eleição ainda muito condicionada, pelas elites brasileiras da rapina, de Fernando Collor de Melo.

Portanto, o movimento e a consequência do Diretas Já!, não obstante a resistência militar, eram historicamente inevitáveis. Não havia mais lugar para o regime ditatorial. Novos tempos e condições exigiam mudança.

Todavia, diferentemente do movimento Diretas já!, e enfrentando a mesma sanha autoritária da ditadura militar vencida em 1985 pela redemocratização do país com a promulgação da Constituição Federal Democrática de 1988, a sanha autoritária bolsonarista, neofascista, atual encontrou eco favorável ao seu retorno em grande parte da população brasileira.

Diferente do período inicial da redemocratização do Brasil, a sanha neofascista bolsonarista atual compôs, dentro dos marcos da incipiente democracia liberal herdada e que havia sofrido o primeiro abalo neoliberal com a eleição de Collor, força política de aglutinação popular de índole fascista valendo-se justamente dos processos de legitimação política próprios do modelo de democracia formal representativa liberal.

Ou seja, se com a redemocratização, a sanha autoritária tinha que sair de cena para a entrada da democracia incipiente liberal, agora, em 2022, a mesma sanha autoritária encontrava base para sua promoção e efetivação dentro destes mesmos marcos da democracia formal liberal que haviam substituído o regime ditatorial militar.

Esta atual eleição expressou, indo além da disputa ideológica clássica, esquerda direita, uma polarização política caracterizada pela parte da população brasileira que queria a volta à civilização: ou seja, à manutenção das instituições públicas como mediadoras das relações sociais complexas; e a parte da população brasileira que deseja a ruptura institucional e com os elos mínimos civilizatórios garantidores das soluções dos conflitos por meios democráticos, legais pactuados e pacíficos.

Em outras palavras, nestas eleições, com ampla representatividade para cada lado polarizado, ficamos diante da disputa real entre civilização ou barbárie.

Assim, mesmo ainda dentro dos marcos da democracia formal representativa liberal brasileira, que fracassou institucionalmente em não resistir à atração neofascista do bolsonarismo, a maioria da população brasileira votou pela civilização.

Quer dizer, uma real maioria popular, dentro dos marcos mínimos da democracia formal representativa liberal combalida, conseguiu, pelo voto, fazer o retorno da sociedade brasileira para as vias da democracia, da civilização, com uma possibilidade real e expressiva de uma queda na barbárie pelas mesmas vias!

Isso, ao meu ver, deixa claro que, de fato, a eleição de 2022 foi mais representantivamente democrática do que a que se seguiu ao movimento Diretas Já!

Uma conclusão sobre isso é a de que hoje é possível fazermos um diagnóstico mais preciso acerca das fragilidades do sistema de democracia formal representativa liberal que herdamos da redemocratização.

Outra, que não é possível simplesmente confiar (de modo ingênuo) nestas instituições, que ainda se encontram contaminadas pelo neofascismo. E o individualismo e a competição liberais são afins à estética autoritária do neofascismo.

E outra, que isso implicará na impossibilidade de desmobilização das forças democráticas e progressistas deste país, se quisermos manter viva nossa escolha pela civilização.

E ainda outra, mais positiva: esta atual polarização política, no entanto, dialeticamente, fez nascer, em ambos os polos em disputa, ensejos por reformas instituicionais emergentes: como a reforma política, a reforma do judiciário, e a democratização dos meios de comunicação no Brasil.

Confiamos que a sabedoria e capacidade de articulação política do presidente Lula saberão notar e aproveitar esta oportunidade, e encontrar unanimidade em questões fundamentais onde, nesse momento ainda tenso, nós, que não somos Lula, só vemos discordância.

Daniel da Costa é teólogo, mestre e doutor em filosofia pela USP, pedagogo e músico profissional.

Contribuição para o Construir Resistência ->

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *