Escolhas político-afetivas

Por Sonia Castro Lopes

 

“Foi o chefe mais amado da nação/a nós ele entregou seu coração/que não largaremos mais…”

Esses versos fazem parte da canção Doutor Getúlio, de Chico Buarque e Edu Lobo, feita sob encomenda para o musical ‘Vargas’ que estreou em 1983 no Teatro João Caetano, Rio de Janeiro. Através da música, os autores conseguem retratar um pouco do que foi o governo Vargas no imaginário popular, quando o presidente, ao interromper dramaticamente seu mandato, transformou-se num personagem lendário. Não me lembro dessa tragédia que abalou o Brasil, mas tenho a respeito do episódio memórias de segunda mão narradas por um pai getulista e por um avô udenista. Guerra de narrativas na veia, para usar uma expressão da moda.

Papai era filho de um velho funcionário do ministério da justiça, admirador de Getúlio. Com poucos estudos, começou a trabalhar muito cedo no DASP onde fez carreira como desenhista de projetos. Iniciou sua trajetória na equipe de Jorge Machado Moreira (1904-1992), arquiteto-chefe que elaborou o plano urbanístico e arquitetônico do campus da Universidade do Brasil, atual UFRJ e permaneceu no Escritório Técnico da Universidade (ETU) até se aposentar. Getulista convicto esteve presente às comemorações de posse do presidente em 1951 quando, no meio da multidão, encontrou um cordãozinho de ouro que guardou para presentear o primeiro filho que nascesse. O fato de ter sido ungida com o aquele patuá talvez explique minha simpatia e condescendência pelo ditador que voltou nos “braços do povo” e saiu da vida para entrar na história.  Homem de poucas falas e poucas leituras, não se envolvia em política, mas seguia o líder. Petebista desde sempre, votava nos ‘candidatos autênticos’ do MDB e, discretamente, apoiava Brizola.

Outra referência masculina forte, meu avô materno, era udenista fanático. Incensava o ‘corvo’, apelido dado a Carlos Lacerda, deputado carioca e primeiro governador do extinto estado da Guanabara. Era leitor assíduo de Seleções do Reader’s Digest, revista fundada em Nova Iorque, em 1922, porta-voz dos interesses norte-americanos durante a guerra fria. Na campanha de Jânio Quadros à presidência andava com uma vassourinha dourada na lapela fazendo propaganda do candidato que prometia acabar com a corrupção e a gastança exagerada do governo de seu antecessor, Juscelino Kubitscheck.

Os almoços de domingo só não eram mais tensos porque papai pouco falava e, diga-se de passagem, nutria grande respeito pelo sogro. Mas, se vovô se continha nas reuniões familiares, descarregava todo seu veneno antigetulista nos vizinhos. Havia uma, em especial, cujo pai fora amigo de Getúlio. Nos debates travados com Dona Cíntia, a tal vizinha, meu avô se transfigurava. Eram dedos em riste, provocações, apelidos pejorativos, xingamentos. A fúria era tanta que os respectivos cônjuges, por vezes, precisavam contê-los. Ao final da refrega, cansados e visivelmente constrangidos, admitiam que política, religião e futebol eram assuntos que não se discutiam. No dia seguinte, esquecidos da trégua, recomeçavam o duelo.

Vivi minha infância entre polarizações: Getúlio ou Lacerda?  Botafogo ou Fluminense? Igreja Católica ou centro espírita? Isso durou até minha entrada na universidade quando resolvi ingressar no curso de história. Ali resolvi meus dilemas. Optei pela ‘esquerda’ para desespero de vovô, que passou a me seguir como uma sombra sempre com receio de que eu me metesse em ‘aparelhos subversivos.’ Religião e futebol nem pensar… Ópios do povo, alienação total.

Iniciei a militância política com Brizola. Inscrita como fiscal voluntária do PDT durante o pleito de 1982, acompanhei as apurações num clube no Méier para onde o partido me destinou e me insurgi com a roubalheira de votos que quase tirou a vitória do nosso candidato (quem lembra do caso Proconsult?). Cheguei a optar pelo velho Briza no primeiro turno das primeiras eleições em que votei para presidente, mas no segundo turno não tive medo de ser feliz. A partir de então, me bandeei de vez para o PT.

No poder por quase 14 anos, inegavelmente, o Partido dos Trabalhadores modificou a fisionomia do país. Há cinco anos, vítima de um golpe jurídico-parlamentar, foi alijado do poder e o presidente Lula condenado em processo montado por um juiz criminoso, agora desmascarado. Preso injustamente, finalmente encontra-se livre, leve e solto retornando com força à arena política. Novos ventos parecem soprar nesse sofrido país que, além da pandemia, padece com os péssimos administradores eleitos para governá-lo.

Tenho boas recordações de minha infância, especialmente da figura de um avô reaça que se desdobrava em afetos e me amava incondicionalmente. Politicamente equivocado, não chegou a influenciar minhas escolhas, até porque nos deixou mais cedo do que devia. Atualmente, em termos religiosos, misturo doses de ateísmo e espiritualidade, afinal a idade nos torna mais crédulos e medrosos. Quanto ao futebol… Bem, assumi de vez a simpatia que sempre tive pelo tricolor das Laranjeiras, clube de meu avô. Mas confesso que foi Fred quem me converteu de vez numa torcedora apaixonada.

Reprodução e montagem da foto: Carlos Monteiro

 

 

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